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segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Um mês, dezesseis anos - dois limbos

Dezesseis anos atrás, eu estava muito tranqüila. Minha mãe estava em coma e eu estava num limbo. Pois, na verdade, minha mãe não estava em coma nenhum - claro. Ela estava escondida num fundo de armário esperando para ser resgatada. E, com essa certeza, passei o dia absolutamente impávida. Sem o menor sinal de angústia. Lembro que a então namorada de meu pai me levou para passear. Eu gostava dela. Eu estava feliz.

No dia seguinte, minha mãe morreu. E parte dela continuou no armário, para sempre.

Mas, ainda que bem protegida no fundo de um armário, eu não tinha mais contato com ela. Então comecei a pensar no lado bom da coisa toda. Isso do lado bom - eu vou dizer. Que se um dia inventarem uma medição para o sofrimento humano, a maior unidade de medida deveria ser o Lado Bom - indicativo do esforço que o sofredor precisa fazer para encontrar uma inexistente vantagem numa situação que é só tragédia.

Então naquela época meu sofrimento era de aproximadamente 100 000 LB. E qual era o grande Lado Bom da Coisa? Que uma saia-short roxa da minha mãe, que eu adorava, agora ia ser minha. Ha! Eu era mesmo uma menina de muita, muita sorte.

O sofrimento LB, como todo sofrimento defensivo, vem para evitar um sofrimento maior, que tememos - eu temia - não poder suportar.

Não deixa de ser revoltante pensar que o Sofrimento Maior é sempre melhor de ser sofrido do que o LB. Porque pelo menos é verdadeiro.

Dezesseis anos depois, tenho um mês de Estados Unidos nas costas, e um limbo como morada. Ainda não cheguei de todo. Há duas semanas, eu me dava conta de que podia sentir falta de um bombril - e o limbo era menor. Hoje, o que eu não daria para poder sentir falta de coisas para a casa. De fazer uma lista de supermercado. Tá, estou sendo dramática - foda-se. É isso mesmo. Maior drama. Porque passou-se um mês, e eu não posso fazer uma compra de supermercado - porque pode ser que a gente precise evacuar de novo, e aí não dá pra deixar a comida micando e mofando na geladeira. Como eu queria fazer uma lista de supermercado decente. Como eu queria lotar a minha geladeira de bobagem.

Outra coisa (outro limbo): ainda não falo espanhol direito. E tenho medo de tentar.

E a base principal deste solo de nuvens que constitui o meu limbo particular: chegou a vez de a minha avó ir para o armário.

Ok, minha avó não morreu. Fato.

É fato também que, para a criança muito pequena, ausência e morte dão exatamente na mesma.

Seguindo com os não-pensamentos, portanto: estou pequeninha de tudo. Um bebê. Sem mãe e sem avó.

Por outro lado - definitivamente, eu cresci. Porque meu sofrimento LB, agora, é zero.

Eu até tentei. Esforcei-me para imaginar que no fundo era ótimo, minha avó não ter conseguido o visto. Porque imagina? Se ela conseguisse, ia vir pra cá pra ficar me enchendo: "filhinha, juízo!".

Não rolou.

Porque a verdade é que eu adoro quando a minha avó me chama de filhinha e fala que é para eu ter juízo.

Eu adorava ver minha mãe vestindo aquela saia-short roxa.

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