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sexta-feira, 27 de julho de 2007

Historinha para o dia de hoje

Quando me disseram que minha mãe havia morrido, quase não me abalei. Eu tinha dez anos, e fui jogar basquete. Talvez meu pai e minha tia se lembrem disso; talvez tenham preferido esquecer. Meu pai chora por tudo; mas minha tia, foi a primeira vez que a vi chorar. Lembro-me de vê-los subir os degraus da escada da casa de minha avó e do estranho desejo de que a escadaria fosse infinita, para que meu pai e minha tia não acabassem nunca de subi-la; para que a vida pudesse continuar para sempre como estava. Como estava, eu tinha a inabalável certeza de que minha mãe, naquele momento mesmo, discutia com os médicos o gesso que combinaria melhor com suas roupas.

A cada degrau escalado, um novo se ergueria à frente deles. Eternamente. E quem sabe assim, tantos degraus depois, meu pai e minha tia se cansariam – de subir e de chorar –, e lembrar-se-iam do que, afinal, tinham vindo fazer ali. Eu pularia no colo do meu pai, abraçaria minha tia, e juntos, os três, desceríamos a escada, que acabaria rapidinho. Em um segundo, estaríamos a caminho do hospital, onde eu veria o longo gesso branco de minha mãe e negociaria com ela um espacinho onde eu pudesse desenhar uma menina e copiar pelo menos uma estrofe do Soneto da Fidelidade.

Mas a escada acabou. Sentido subida.

Não houve, no entanto, problema algum. Como disse, não me abalei. Substituí uma certeza por outra com rapidez de fazer inveja a muito camaleão. Afinal, não era minha mãe que havia morrido. Ninguém sabia disso – Deus o havia comunicado a mim –, mas quem morreu, na verdade, foi uma sósia dela. No dia do acidente, esta mulher, que lhe era absolutamente idêntica – usava a mesma roupa e tudo – invadiu a casa, surpreendeu minha mãe distraída lendo poesia e amarrou-a bem amarrada no fundo do armário. Esta mulher havia pensado em tudo: há meses que ela vinha estudando a rotina de minha mãe, sua voz, seus trejeitos, seus trajetos. E tanto estudo culminara naquele dia, quando, em pleno feriado (eu não disse que ela havia pensado em tudoela sabia que minha mãe estaria em casa no feriado) – ela executou seu plano maligno de ocupar o lugar de Agar. Ou melhor, começou a executá-lo (vocês estão pensando o quê, ela tinha um plano elaborado) – seu objetivo último, após meses e anos fingindo ser minha mãe, era ir conquistando paulatinamente a confiança de todos, até o dia em que ela conseguisse roubar-nos de tudo de que dispúnhamos. O apartamento, a escola, o carrotudo. Gananciosa, esta mulher. Que bom que ela existia!

Era ela que estava no carro na hora do acidente. Foi ela que morreu. E minha mãe continua , segura, num fundo de armário na Serra da Cantareira. Mais cedo ou mais tarde, alguém a encontrará.

Com essas certezaspois era de certeza que se tratava, e não de conjecturas ou wishful thinking –, dormi tranqüilamente nos dias que se seguiram à sua morte. Dias, meses...

Quinze anos se passaram até eu conseguir visitar o túmulo de minha mãe.

Foi estranho. Afinal, ela não estava realmente aquilo era apenas uma placa de pedra com um nome em cima. Que, por acaso, era o dela.

No fundo, no fundo mais infantil que existe em mim, ela ainda mora num armário. Até hoje.

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2 Comentários:

Às 27 de julho de 2007 às 21:03 , Blogger Bel disse...

Lindo o texto, Cami. Corajoso, simples. Direto e sinuoso, aerado e denso ao mesmo tempo. Gostei muito.

Como assim: "Como eu queria ser escritora"?? Falta alguma coisa, por acaso? Eu acho que não... Quer dizer, talvez falte "apenas" o auto-reconhecimento.

Beijos!

 
Às 28 de julho de 2007 às 15:54 , Blogger Camila disse...

Ai, ai, como é bom ter uma amiga coruja! Obrigada, querida. Beijos e até as batatas de amanhã!

 

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