Flip #2
Agora que todo mundo está atento ao Pan, volto a falar sobre a Flip. Quem sabe no ano que vem, quando todo mundo estiver ligado nas Olimpíadas, eu falo do Pan?
1. Amós Oz
Pensei em escrever uma lista das coisas que ele disse que ficaram em mim (o duplo-sentido ficou nonsense porém bonitinho, não?).
Desisti. Fiquei com medo de a lista virar uma espécie de "minutos de sabedoria" da pior qualidade. Então, decidi restringir-me a uma coisa só, de todas as que ficaram em mim para nunca mais sair e para sempre serem lembradas, digeridas, esquecidas, relembradas e modificadas. Mais ou menos, foi isso o que ele disse, segundo a minha memória e a minha imaginação:
"Um livro, no final das contas, não é feito de idéias, pensamentos, sentimentos, sensações – mas apenas dessas coisas tão pequenas a que chamamos palavras. E cada uma das palavras de um livro precisa ser olhada, ouvida, estudada, examinada contra o sol. (E ele faz como quem observa uma pedra preciosa à luz solar.) São milhares, milhões de micro-decisões que um autor precisa tomar, em relação a cada palavra que escreve. Seria este suéter azul, azul claro, azul marinho, ou não precisa de adjetivo algum que lhe especifique a cor? E se eu decidir que de fato aquele substantivo precisa da companhia de um adjetivo – onde colocá-lo na frase? As decisões que um autor precisa tomar não dizem respeito apenas às palavras individualmente, mas às posições que ocupam na frase, às relações que estabelecem umas com as outras."
É precisamente isso que sinto toda vez que percebo o teclado movendo-se sob meus dedos – seja na escrita de um texto acadêmico, uma historinha para a Piauí, um e-mail para uma pessoa querida ou um post neste blog. Milhões de micro-decisões. Escrever é de uma responsabilidade incrível – e terrível, e deliciosa.
Além disso, é sempre estranhamente reconfortante sentir que se possui pelo menos uma coisa em comum com um gênio.
2. Em defesa de J.M. Coetzee
Defendo o autor de um ataque que eu própria, criatura vã, lhe fizera antes de testemunhar sua participação nesta última Flip. Até então, eu achava que a mesa dele seria uma bobagem – afinal, o cara já havia deixado claro que não responderia a perguntas nem da platéia nem de ninguém, restringindo-se a ler um trecho de seu último livro – que, aliás, já circulava pela internet. Ora, pensava eu, por que então se dar ao trabalho de ir ao aeroporto, fazer check-in, esperar o avião, pegar o avião, escala Deus sabe onde, chegar no Rio, tomar dramin e pegar nova condução para Parati, se não for para debater a própria obra com os participantes da festa?
Pois pensava eu isso tudo, até a noite de sábado chegar. Peguei o folheto que trazia o trecho traduzido a ser lido pelo tal cara em instantes. A partir desse gesto, minha opinião começou a mudar.
Em primeiro lugar, aquele texto – que, aliás, juro por Deus parecia uma série de posts do melhor blog de todos os tempos – foi o mais impactante de todos os que eu havia lido na Flip até então. Tratava-se de uma série de opiniões – divididas nas categorias "brandas" e "fortes" – sobre assuntos diversos, a começar por uma brilhante discussão da linguagem de que nos utilizamos para falar de nosso próprio corpo. A seguir, Coetzee by Camila, em discurso livre, indireto e fantasiado:
“Falo ‘minhas mãos’ e ‘meus pés’, mas certamente não saio por aí dizendo ‘meu câncer’. Os dentes, por sua vez, estão numa condição intermediária entre membros e câncer: são meus, decerto, porém não me exigirão um doloroso trabalho de luto caso necessitem ser extraídos em função de uma cárie. O que Coetzee não disse é que, nesse caso, o luto a ser elaborado depende em larga medida da posição ocupada pelo dente na boca. (E eu que nem suspeitava de que os dentes poderiam ter tanto em comum com as palavras!) O mais interessante do texto, contudo, não é nem essa gradação de partes do corpo que o autor estabelece, mas seu próprio espanto em chamarmos de nosso algo que, em princípio, somos nós. Eis a crítica a Descartes, tão velha quanto o próprio, reinventada – citando Alice, da historinha piauiense abaixo, de forma ‘pura e fresca’. Sim, é claro que dezenas de milhares de intelectuais já pensaram e escreveram sobre nossa parcial e limitada relação linguageira com o corpo e o sensível – mas aposto que não foram muitos os que conseguiram alcançar a elegância e a precisão exibidas pelo texto de Coetzee.”
E então eu senti. Aquela sensação que há tempos – desde os primeiros textos que li do Ogden, talvez? – não visitava o meu corpo: um arrepio na alma (olha o cartesianismo aí gente!), que só posso traduzir muito pobremente por: "finalmente alguém conseguiu colocar em palavras isso que há tanto tempo, o tempo de uma humanidade inteira, precisava ser dito".
E aí J.M. Coetzee leu o texto. E a sensação só se confirmou.
Fiquei, então, pensando sobre a postura do autor de não comentar a própria obra. Por mais que eu, como futura leitora, obviamente preferisse que sua atitude fosse diferente, não pude deixar de considerá-la tão válida e aceitável quanto qualquer outra. E, de repente, aquela saga toda para chegar a Parati pareceu-me perfeitamente razoável, pois sua leitura fez toda a diferença – pelo menos para a minha Flip particular. Outro dia eu disse aqui que letras de música foram feitas para serem ouvidas e cantadas. De fato – mas textos literários, de certa forma, também. Foi bom ouvir a interpretação do autor, seca e precisa como sua narrativa. E, a bem da verdade, eu não trocaria essa experiência auditiva por um “papo descontraído” sobre o que o autor gosta de fazer nos momentos de folga, suas preferências culinárias ou outras inutilidades do gênero – coisa, aliás, que o Sérgio Rodrigues já disse muito antes e muito melhor do que eu.
Saí de Parati com Desonra na mão, uma velha sensação no corpo-alma (eita, cartesianismo!) e novas idéias na cabeça.
Marcadores: elaborar, recordar
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