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quinta-feira, 12 de julho de 2007

Pathos e a cidade

Hoje mandei lavar o meu carro. O dono do lava-rápido é um menino com quem estudei (se é que naquela época estudávamos) na segunda série. Encontramo-nos uma lavagem de carro atrás, há uns três meses (é, eu sei, já estava na hora de lavar de novo). Quando fui buscar o carro, ele ainda não estava pronto, então fiquei conversando com o menino (cara? homem? rapaz?) por uns minutos. Perguntei sobre o filho dele, e foi o que bastou para ele me contar histórias mil sobre o bebê, a mãe dele (do bebê) e a mãe dele (do menino / cara / homem / rapaz). Pequenas histórias que me preocuparam, me comoveram. Ouvi tudo atentamente.

Após uma declaração particularmente impactante dele, respondi com um "tá" reflexivo. Não foi o "tá" que em inglês se traduz por "yeah, right", com uma sobrancelha levantada e uma conotação de dúvida e ironia: "a quem você está querendo enganar?". Foi o "tá" de quem acaba de ouvir uma história muito delicada e está fazendo um grande esforço para se aproximar dos sentimentos envolvidos. Mas quem sabe a minha vontade de explicar bem explicadinho o meu "tá" não esconda uma conotação não pretendida, porém nem por isso menos evidente - a primeira, tão desafiante e questionadora?

Seja como for, meu "tá" perturbou. O menino - agora, definitivamente, era de um menino que se tratava - arregala seus pequenos olhos e me diz com espanto: "nossa, esse foi um 'tá' de psicóloga!".

Confesso que me surpreendi. Talvez o assunto estivesse ficando difícil demais, e nessas horas uma piada é como o pão que absorve a pimenta. Advogado é ladrão, médico é alcoólatra e psicólogo é louco. Até aí, tudo bem. No entanto, ficou a dúvida. Como diria Carrie, "I couldn't help but wonder" - e se ele estivesse certo? Estaria eu virando uma autômata? Uma psicóloga que se veste como psicóloga (como se veste uma psicóloga?), fala como psicóloga (isso eu sei: "reforço", "significante" ou "holding", a depender da tribo) e, principalmente, não consegue (não se permite?) travar uma conversa de bar ou de balcão de lava-rápido sem a tudo querer ouvir, sentir, interpretar?

Nesse momento, a câmera focaria a tela do computador com a seguinte pergunta:

"When it comes to psychologists - is it possible to be a part-time professional?"

(Só que o seriado chamar-se-ia Pathos and The City.)

Passamos então a assuntos mais amenos, como a lei de zoneamento urbano. Falo uma bobagem qualquer sobre o meu consultório.

"Consultório do quê, o seu?"

E agora o espanto era meu. "Sou psicóloga." Mas eu me lembrava perfeitamente de ter comentado isso com ele, na primeira lavagem, três meses atrás!

"Nossa, não é que eu acertei na mosca? Eu não sabia que você era psicóloga, mas eu fui na psicóloga quando eu era criança."

Como diria meu tio - seria impossível? Que fim levou aquela nossa conversa? Será que o comportamento de conversar comigo pela primeira vez trouxe-lhe conseqüências indesejáveis e ele, assim, puniu o comportamento de se lembrar das lembranças subseqüentes (e será que é assim mesmo que os comportamentais pensam)? Teria o significante "psicóloga" - ou, quiçá, uma cadeia inteira de significantes - sido recalcada? Ou teria eu conversado com um falso self por demais preocupado com sua adaptação ao meio para prestar atenção ao meu verdadeiro self? Havia ainda a possibilidade de o cara - pois agora ele era um cara, um ser qualquer, avulso, estranho a mim - não ter se esquecido completamente de nossa primeira conversa. Quem sabe as informações a meu respeito não teriam sido alojadas nos recônditos de seu subconsciente, esta instância psíquica tão prezada por aquelas pessoas que nunca leram uma linha de Freud mas sentem-se bastante satisfeitas com seus conhecimentos psicanalíticos? Teriam algumas daquelas informações, agora, emergido de seu subconsciente diretamente para a minha cara e o meu espanto?

Uma coisa é certa - meus conhecimentos relativos ao senso comum da psicologia ultrapassam em muito aqueles referentes a Skinner, Lacan ou Winnicott. Ora bolas, talvez eu não seja tão psicóloga assim!

Mas o sinal de angústia já havia sido disparado em mim. E, já que o homem - tratemo-lo de igual para igual, ele um homem assim como eu uma mulher - proferiu dois "nossa!", dou-me o direito de formular uma segunda questão à la Carrie:

"When it comes to conversations, how much do we really listen to each other?"

Afinal, a gente ainda pára pra se ouvir? Se ler? Fiquemos um instante na leitura, para início de conversa. Certamente, sou uma pessoa que gosta mais de literatura do que a média da população universitária brasileira - o que, na prática, significa que meus interesses literários estendem-se para além das leituras obrigatórias do vestibular. Ainda assim, algumas pessoas chegam a me considerar uma intelectual - afinal, uso mesóclise e estudei na USP. Pois bem: acabo de chegar da Flip e, de todos os autores presentes - dentre os quais encontravam-se, dizem, alguns dos grandes escritores da atualidade - eu, que supostamente sou uma pessoa tão interessada assim, só havia lido um mísero livro de um único autor. E isso há pelo menos uns 15 anos, e porque o livro era sobre música. (Estou falando do Chega de Saudade, do Ruy Castro, obra fundamental que, nem preciso dizer, nada tem de mísera.) Mas então - de Chega de Saudade até hoje, o que aconteceu? Onde eu estava e que andei fazendo, esses anos todos, que nunca havia me aventurado por um livro do Amós Oz - talvez o homem mais iluminado, para roubar um adjetivo da Bel, em cuja presença já tive a sorte de estar - e nem sequer havia ouvido falar em Nadine Gordimer?

Talvez eu esteja misturando as bolas aqui, tentando estabelecer um paralelo entre o gosto pela leitura e a capacidade de as pessoas se ouvirem umas às outras. Mas talvez não, e gostaria de considerar essa última possibilidade por um momento. Nessas férias, uma das coisas que li (ainda não terminei) é o Fahrenheit 451 - leitura, aliás, bastante apropriada para um evento que teve como um de seus pontos altos o debate acerca da liberdade de expressão. Uma das tantas cenas marcantes do livro é aquela em que Montag desliga a televisão - ou melhor, um projetor de imagens em três dimensões que ocupa as três paredes da sala - e sugere à esposa e suas amigas, vejam vocês, que todos conversem. A reação é unânime: "the women jerked and stared". Será que, de fato, estaríamos nos desabituando a verdadeiras conversas - conversas com duas ou mais pessoas, e não apenas eu que falo?

Por favor, conversem comigo.

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2 Comentários:

Às 14 de julho de 2007 às 21:31 , Blogger solani disse...

oi camila pode ser que esteja falando alguma besteira mais e o que eu acho ta!!! aho super importante agente reencontra velhos conhecidos e gostoso saber como esta ,se ja casou formou uma familia,etc!!! bem ele deve ter ficado feliz de ter uma psicologa amiga que talvez possa lhe tirar alguma duvida e saber que alguem pode ouvi-lo e dar um parecer de profissional... nao se preocupa que vc nao esta automatica e aproveita esse reencontro para ter mais um amigo somente isso,ele deve ter ficado feliz e surpreso por descobrir que vc rea psicologa!!! beijos

 
Às 15 de julho de 2007 às 21:55 , Blogger Camila disse...

Então, aí é que está - eu não estava dando um parecer de profissional... Mas folgo em saber que você não me acha uma pessoa automática! Beijos pra você também!

 

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