De amizades e agasalhos
Sempre achei que, se as circunstâncias houvessem sido distintas e os planos divinos outros, minha mãe e a mãe da minha melhor amiga seriam, também elas, ótimas amigas entre si. Comentei isso outro dia com a mãe da minha amiga, dizendo que me é bastante fácil imaginar as duas falando mal, por exemplo, da Rosane Collor ou coisa que o valha. No que a mãe da amiga concordou veementemente e proferiu um discurso rápido e certeiro com meia dúzia de adjetivos bastante precisos desqualificando nossa ex-primeira dama (taí um “ex” que dá gosto de dizer).
Minha mãe morreu quando eu estava na idade em que as meninas começam a aprender coisas de menina imitando a mãe. Maquilagem, depilação, salto alto. Minha mãe não teve tempo de me ensinar muito, mas uma coisa muito rapidamente eu aprendi: nunca, jamais, em hipótese alguma, combinar a estampa da bolsa com a estampa do sapato, à la Rosane Collor. Essa regra básica da etiqueta, do bom senso e da boa educação minha mãe fez questão que eu aprendesse desde muito cedo. Ela achava isso muito brega. Ela, aliás, tinha o costume de desqualificar muitas coisas como sendo bregas. E é sobre uma delas que falarei aqui.
Vocês já sofreram a intervenção da Campanha do Agasalho? Não estou falando da caixa de papelão enfeitada pela foto de algum caridoso ator global e esquecida no canto de um posto de gasolina: essa, tudo bem. Não: estou falando daquele caminhão que passa pela sua rua no domingo à tarde, conclamando você e seus vizinhos a jogarem seus agasalhos usados pela janela.
Pois bem. Minha mãe achava tudo isso – o caminhão e os vizinhos que jogavam os agasalhos – de uma breguice extrema e infinda.
E não é que vim a discordar de minha mãe? Não acho que o caminhão seja brega. Acho, isso sim, que suas andanças por minha rua constituem um crime. E se não for um crime criminoso, desses que o Maluf faz, no mínimo é um atentado ao bom senso no mesmo nível de nonsense que os sapatos e bolsas de nossa supracitada ex-primeira-dama.
Pois vejamos: acreditemos na bondade das pessoas e no Papai Noel e suponhamos que o objetivo maior dessa campanha, conforme ela mesma propaga, seja distribuir agasalhos entre aqueles que não os têm. Uma campanha solidária e cidadã, portanto. Então alguém aí me explica como é que uma campanha que se pretende solidária – e a solidariedade não implicaria justamente, em primeiro lugar e antes de tudo, o respeito ao próximo? – dá-se o direito de entrar em minha casa sem bater na porta nem pedir licença, infernizando minha santa paz dominical?
Sim, pois a questão é justamente essa. Por mais que os publicitários se esfolem e se matem para lavar meu cérebro e me deixar babando em frente à TV diante de um comercial, no limite eu sempre terei a opção de desligar o aparelho ou mudar de canal. E se a mocinha do lar dos idosos desarvorados me ligar pedindo uma contribuição, eu sempre posso, educadamente ou nem tanto, desligar o telefone na cara dela.
Mas a Campanha do Agasalho que passa na minha rua não permite nada disso. Querendo ou não, sou obrigada a ouvir tudo o que eles têm a dizer. Deve ser mais ou menos isso que os pacientes do HC têm de agüentar quando vem a fissura: não há rigorosamente nada a fazer, a não ser esperar a maldita passar.
Ainda assim, um leitor de bom coração – meu pai, por exemplo – poderia argumentar: “mas filha, é por uma boa causa, você não tem coração?”. Não, eu não tenho um bom coração, mas a questão não é essa.
A questão é que as pessoas que não têm agasalho muito claramente estavam longe de ser o principal foco da atenção do caminhão que passava. Pois seu objetivo principal era distribuir uma revista de fofoca e anunciar, a cada minuto, a emissora de rádio que patrocinava a campanha. Uma emissora tão ruim, que precisa recorrer a esse tipo de propaganda para se fazer conhecer. Não ouço rádio, portanto não conheço essa emissora; mas eu não me surpreenderia se descobrisse que eles tocam, diariamente, o grande sucesso “Marrom bombom”.
O tempo estava passando, e os animadores do caminhão berrando com entusiasmo cada vez maior. Decidi então tomar uma atitude e ligar para a Polícia Militar, ou whatever. Afinal, não tem uma lei que proíbe esse tipo de coisa?
Foi quando veio a notícia desalentadora. Do alto do caminhão, os animadores declaram o seguinte:
“A gente queria agradecer também a Polícia Militar e a Subprefeitura de Santana, que deram a maior força pra gente...”
Desisti da ligação, desanimada. Que fazer, quando o poder público está convencido de que a melhor maneira de se combater a desigualdade social e a concentração de renda está em botar um caminhão na rua pra fazer propaganda de instituições privadas?
A resposta, tão resignada quanto provisória, é simples: escrever neste blog.
Marcadores: elaborar, recordar, repetir
4 Comentários:
Vou discordar.
Já participei de uma campanha como essa que você descreveu. Com caminhão e tudo pela rua pedindo os agasalhos. Não sei quem organiza a específica que passa pela sua rua. Mas, na que participei, havia pessoas bastante sérias, dispostas a recolher o máximo possível de agasalhos par distribuir àqueles que, todo inverno, correm o risco de morrer de hipotermia. Quanto a invadirem a sua casa, de fato, não é a coisa mais agradável, mas, como você disse, é sim por uma boa causa. Tanta coisa invade a nossa casa por causas piores. Você lembra das pamonhas de Piracicaba?
E se as caixas de agasalho ficam abandonadas nos postos de gasolina, acho bom que alguém decida chamar a atenção das pessoas para a necessidade de doar um agasalho.
De fato, ações assistencialistas não são a melhor forma de intervir para diminuir as diferenças sociais, mas podem ser usadas em situações emergenciais, e devem ser. É bom que a sociedade civil se organize para tanto.
Quanto à emissora de rádio. Ela não é o grande motivo pelo qual o caminhão está circulando pelo bairro, ela é o meio. Patrocinadores são necessários em nosso mundo. E são importantes.
Beijos,
Mari!!
Oi, Mari,
Eba, uma primeira discordância ferrenha neste blog!
Então, Mari, eu simplesmente não consigo deixar de levantar uma sobrancelha toda vez que ouço o argumento "os fins justificam os meios". Esse argumento pode servir de premissa para coisas seriíssimas, do tipo "tudo bem torturar uma pessoa se é para salvar milhões" (à la 24 Horas). Assim como seria tudo bem importunar minha santa paz dominical se é para salvar algumas pessoas da hipotermia. O problema é que, assim como a situação retratada em 24 horas simplesmente não corresponde à realidade que os serviçõs de inteligência enfrentam (vide reportagens da Piauí de maio), também não é verdade que o pessoal do caminhão (não sei o seu, mas com toda a certeza o que passou pela minha casa) estava ali para ajudar o próximo. Os meios subvertem os fins, isso sim. Patrocínios são necessários em nossa famigerada sociedade capitalista, é claro; o que não consigo achar aceitável é o patrocínio se apropriar e subverter o produto que deveria patrocinar. Sem brincadeira, eles interrompiam a pregação beneficente a cada minuto para divulgar a rádio... As coisas chegaram a um ponto em que não dava mais pra saber por que é que o diabo do caminhão estava ali, se pra arrecadar agasalhos ou distribuir revistas promocionais e divulgar a emissora.
Tirar as caixas de papelão do abandono? Sem dúvida. De que jeito? Não faço idéia, não sou publicitária. Só sei que, definitivamente, desrespeitar a minha privacidade (e a dos meus vizinhos) não é o melhor dos métodos. Ao fazê-lo, mais do que desrespeitar a mim, eles estão desmerecendo a si próprios enquanto instituição que se importa com o bem-estar das pessoas.
Quando escrevi o post, tinha certeza que essa crítica viria. Como, por diversas vezes, os fins foram utilizados, como vc afirmou, para justificar crimes terríveis (meios), é comum e freqüente pessoas razoáveis “levantarem a sobrancelha” perante o argumento de que fins justificam meios. De fato, não justificam de forma completa. Mas não se deve fazer generalizações (o que é outra crítica corrente). A vida exige que façamos opções. Muitas vezes, é preciso abrir mão de algo para que se obtenha algo mais valioso. Ter que abrir mão sempre parece ao prejudicado um péssimo meio. Eu respeito seu direito a ter uma tarde tranqüila, mas acho que recolher agasalhos na cidade de São Paulo para pessoas que não possuem agasalho é mais relevante do que a Camila ter uma tarde tranqüila. Isso em tese. Não fiz um estudo detalhado sobre quantas pessoas necessitam de agasalhos ou qual o número de pessoas que morrem de hipotermia em São Paulo por ano. De qualquer forma, se for uma, eu já acho que a vida dela vale mais do que sua tarde de tranqüilidade. O meio utilizado pelo caminhão é bastante eficiente. Talvez haja outros, mas não acho que esse seja ruim o suficiente para eliminar a importância do fim que almeja. Só isso!
Beijos,
Mari!!
oi que debate hem!!!eu acho que as duas tem razâo eles deveriam pensar em como conseguir chamar a atenção sem tirar o sossego daqueles que trabalham a semana inteira e que ficam esperando anciosos o fim de semana pra descansar , e chega finalmente e vc não consegue o tão sonhado sossego...mais acho que e por uma boa causa!!!! rrssrsrsrrsrsrsr
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