Historinha para a Piauí
Escrevi a historinha abaixo para o Grande Concurso Literário da Piauí de julho. Estou com preguiça de explicar do que se trata – o concurso e o contexto por trás do texto –, então quem quiser saber mais que veja aqui. E leia o texto, por favor!
***
Tabula rasa
Há qualquer coisa de estranho em se chamar Alice. É diferente de Amélia. Que sabemos dela, além dos poucos versos e compassos? Que atributos a distinguem, que tarefas do lar gosta de executar? Sabemos de seu despojamento, inferimos sua lealdade. E só.
Coisa bem diversa é ter um livro inteiro dedicado a uma personagem com quem se compartilha o nome. O livro é a desculpa conveniente e necessária para que formem uma opinião a meu respeito quando não sabem mais o que pensar de mim. É sempre assim: em algum momento, invariavelmente, os homens desistem de entender a Alice – e passam a se relacionar com o mito.
Acusam-me de inconstância e volubilidade, sem saber que me acusam de ingerir sólidos e líquidos que ora fazem-me crescer, ora diminuir. Acusam-me de cultivar uma confiança imprudente nos outros, sem saber que me acusam de seguir aventureiramente um coelho branco. Acusam-me de alheamento e descaso, sem saber que me acusam de viver maravilhas noutro país.
“Mas Alice, eu já disse que não sou mitômano!”, é o que insistem em dizer. E o que mais diriam? Acaso admitiriam possuir crenças fundadas num livro que nunca leram? Não – insistem em se tratar de mim mesma. Mas juro que não sou eu. É a outra. Mas a história que me fazem ouvir, ah, essa é sempre a mesma.
Até o dia em que conheci o homem que era tomado por um autor.
Dante era uma pessoa adorável. Casamo-nos em seis meses, e vi que o casamento era bom. Passados outros seis meses, contudo, comecei a enxergar outras coisas também. Também ele poderia ser acusado de alheamento e descaso – mas não por viver maravilhas aleatórias e inespecíficas.
Eu temia que houvesse uma Beatriz.
Decidi confrontá-lo. E, mais uma vez, ouvi a mesma história. Só que, agora, contada por outro autor. Um autor que deveria falar sobre infernos e paraísos, mas só conseguia contar a história da menina de imaginação demasiadamente fértil.
Foi aí que me dei conta. Alice, Dante. Eu não agüentava mais. Eu precisava ser nocauteada por uma tabula rasa que me deixasse inconsciente e me permitisse acordar pura – virgem de idéias e de pecados. Eu precisava de um começo novo e fresco. E senti que também ele ficaria grato em poder começar tudo outra vez. Pela primeira vez.
E assim foi. Eu lhe falei de um lugar onde nos sentiríamos no deserto. Sua gratidão me confortou. Partimos em silêncio.
Quando chegamos do estacionamento abandonado, era bom sentir que algo estava diferente. De Alice, Dante, passamos a Alice e Dante. Da Silva. Os dois.
Marcadores: elaborar, repetir
2 Comentários:
Cara Alice,
você se indispõe contra os olhares condescendentes para a menina, sente-se mal compreendida. Acusa-os de te tomarem por outra coisa.
Mas não poupa esse Dante do mesmo pecado, tomando outrem pelo mito.
Então, vou fazer o contrário, e não te tomar pelo mito: porque Alice, afinal, consegue atravessar o espelho - não teve medo do coelho, do grifo ou do chapeleiro, nem da rainha de copas, que sempre manda cortar cabeças.
Caro Anônimo,
Você captou bem o dilema da pobre Alice: vivia acusando os outros de preconceito, indignadíssma - até se perceber vítima da mesma cilada. Ela tratou Dante do jeito que estava habituada a ser tratada. Felizmente, pôde se dar conta disso a tempo de levá-lo a um estacionamento deserto, de onde saíram felizes para sempre - ou pelos próximos seis meses, não se sabe ao certo.
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