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sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Flowerville e a aguda, dolorosa e excitante contemporaneidade

Há tempos venho querendo escrever aqui sobre Flowerville e Nova Esplanada, Peçonha e Neumani e, principalmente, Nora. Os tempos passaram e justamente agora, quando eu não poderia estar mais ocupada, encontrei tempo para escrever sobre esses condomínios tão parecidos, que imagino estarem situados em algum ponto da Dutra entre São Paulo e Rio.

Logo de início somos apresentados aos dois personagens que considero centrais à trama: o emprendedor multibiliardário e o matemático pobretão. Nossa reação reflexa-condicionada é simpatizar com o pobre bonzinho e indignar-se com o rico malvado. E uma das maiores riquezas do livro está justamente na desconstrução desse reflexo tão burro quanto automático. Detesto recorrer ao argumento genérico "pesquisas mostram", mas não vejo como fugir dele aqui. Recordo que, em algum momento da novela do mensalão, algum veículo de comunicação fez uma pesquisa perguntando às pessoas o que elas fariam se estivessem no lugar dos deputados. Muito mais do que a metade respondeu que a mesmíssima coisa, o que vem a comprovar minha tese de que o principal problema do Brasil não é a má distribuição de renda, e sim a má distribuição de educação e, principalmente, de um senso mínimo de civilidade.

Neumani faz parte da maioria que só não recebe o mensalão porque não pode. Pois a verdade é que ele é um escroto. Arrogante a não poder mais, está convencido de ser o próprio gênio injustiçado a quem não foi dada a chance de mostrar ao mundo todo o seu potencial. Mas no começo do livro isso está para mudar, pois ele acaba de ser contratado para desenvolver a fórmula da sociedade ideal por ninguém menos que o principal responsável pela miséria do condomínio onde Neumani vive. Ou seja, olha-o-mensalão-aí-gente.

Peçanha, por outro lado, é igualmente escroto. Só que, como minha avó gosta de dizer a respeito dos ricos, "ele está bem, muito bem". E para falar deste mar de bondade em que Peçanha vive, permitam-me citar o trecho que descreve o projeto arquitetônico proposto para o condomínio por ele presidido. Trata-se de passagem rápida que pode muito bem passar despercebida, mas que constituiu uma das principais chaves de interpretação da obra cá para esta leitora:

"... umas intervenções jocosas em forma de monumentos, um 'monstrous cock estilizado' (...), umas bundas femininas muito redondas em pedra-sabão, anjinhos de galalite abóbora no centro de uma fonte de epóxi preto em forma de vitória-régia. Com essas extravagâncias conseguia quebrar a frieza do conjunto, tornando sua versão de Flowerville um cenário de aguda, quase dolorosa, mas sempre excitante contemporaneidade" (p. 39).

A arquitetura pretendida para Flowerville, além de definir fisicamente o condomínio, define também a personalidade de seu presidente. Pois estes são um mundo e uma pessoa transbordantes de excitação - uma excitação sem limites, sem contornos, que encontra vazão numa violência exacerbada (o garçom cujo rosto é retalhado, a grávida que... não vou contar para não revelar dados demais sobre a trama) ou numa sexualidade que está para o amor assim como uma cebola está para um sorvete. "Encontra vazão", eu disse - mas a vazão de que é capaz um chafariz, pois a excitação sempre retorna para a fonte de onde saiu: toda a violência e todo o sexo não são suficientes para elaborá-la numa vivência mais palatável. Repetição, aqui, é a palavra de ordem: qualquer possibilidade de elaboração está muito distante do que o livro nos apresenta. Não é à toa que o exército de blow-job girls profissionais arregimentado por Peçanha jamais dê conta do recado, pois objetos sexuais - mulheres atraentes - de forma alguma despertam o seu interesse; não, as mulheres são mero escoadouro-chafariz da excitação que seu próprio poder lhe suscita.

Mas Flowerville não é o único empreendimento de Peçanha. Ele é também o fundador de Nova Esplanada, condomínio que não chega exatamente a possuir uma arquitetura definida. Vejamos:

"Composição do solo de Nova Esplanada: caquinhos de tijolo e vidro e telha formando uma areia cascalhuda e suja, farofa crivada de pedras, pedrinhas, pedrouços, pedregulhos, papéis de bala e argolas de latinha de cerveja, moedas de níquel vagabundo que falam de ordens monetárias extintas e solas de sapato carcomidas grudadas em presilhas de sutiã que são pura ferrugem e êmbolas de seringa com estrias de sangue seco. E ainda ossos, ossinhos, fragmentos de cartilagem, todos os formatos e tamanhos, tudo mal reconhecível como se estivesse moído ou não passasse de um ajuntamento de trecos, troços, trastes, breguetes, porrinhas que um dia fizeram sentido como parte de coisas inteiras mas agora são tão inúteis quanto o ar depois que o expelimos dos pulmões" (p. 51).

De minha parte, não tenho nenhuma dúvida de que, sob os monstrous cocks e bundas redondas de Flowerville, repousa este mesmo solo, amálgama de objetos parciais desconjuntados sobre o qual é impossível o nascimento de qualquer coisa viva.

Peçanha e Neumani são, portanto, tônica e sétima maior: as notas que definem a sonoridade de um acorde. Entre elas, ou para além delas, uma nota insistentemente dissonante: a décima terceira menor, que atende pelo nome de Nora.

Nora é casada com Neumani, embora há muito viva completamente alheia a este. É a louquinha da história, sobre a qual as drogas psiquiátricas não parecem surtir nenhum efeito. Os remédios não nos curam de nós mesmos, já dizia Roudinesco; sobretudo, os remédios não curam ninguém de Flowerville e Nova Esplanada. Nora adoece dos caquinhos e pedrinhas do solo que habita; e escreve.

A escrita de Nora constitui a única tentativa de elaboração genuína vista ao longo de todo o livro. Não está em jogo o valor literário do que escreve - que vai do tocantemente singelo ao francamente cafona -, e sim sua tentativa de fazer algum sentido do mundo em que vive. Não se trata também de romantizar a patologia: Nora está em sua melhor forma quando se despe do agasalho anti-sexo e se auto-impõe uma extreme make-over que inclui batom e vestidinho faceiro. Trata-se tão-somente de olhar com honestidade o mundo que a cerca, coisa que seu marido não pode fazer. Uma das melhores passagens do livro (que não consegui encontrar para reproduzir aqui - um Kindle nessas horas ia bem) é aquela em que Neumani encontra o diário da mulher e se espanta diante de sua "prosa caprichada", ficando sem saber se ela já deu ou se pretende dar para um determinado senhor. Não pude deixar de me lembrar dos homens que jamais poderão compreender por que uma mulher se dá ao trabalho de chorar ouvindo Joni Mitchell. Com a diferença de que Neumani é muito pior do que esses homens.

Não por acaso, Nora será peça fundamental de uma reviravolta na trama, que novamente refreio-me de revelar aqui.

Além dessas três notas, há várias outras, claro. A maioria, confesso, pareceu-me bastante dispensável, como a quinta de um acorde maior. Para que serve, afinal, a quinta num acorde maior? Freqüentemente para nada, e assim também a história à la "último dia de um condenado" do garoto que é assassinado por acidente, e a do torturador que se apaixona pela mocinha torturada e a ajuda a fugir, passando então o resto da vida em seu encalço. (Se bem que, até aí, a mesmíssima história me comoveu até as lágrimas em LOST, talvez pelo fato de Sayid ter sido seu protagonista. Mas, Sayid à parte, creio que o problema não está na história ou no personagem em si, mas na posição que ocupam em relação aos demais personagens ou subtramas da história. Em LOST, funciona; aqui, bem menos.)

A despeito desta pequena crítica, As Sementes de Flowerville é um daqueles livros que, mais do que simplesmente considerar "bom", você tem vontade de que todo mundo leia. O mínimo que eu podia fazer era compartilhar essa vontade aqui.

***

P.S.: Sentiu-se tomado pela AI modo qualitativo? Tem outros cinco livros na pilha para ler antes deste? Seus problemas diminuíram: corre lá no Todoprosa, lê o miniconto publicado anteontem e depois me diz se você vai ter a coragem de não ler as sementes.

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