Apontamentos para uma Fenomenologia da Burrice
Trataremos aqui exclusivamente da burrice intelectual; a burrice em que se incorre ao ligar para aquele cara trinta segundos após havermos desligado na cara dele jurando que nunca mais!!! caracteriza-se como burrice emocional, fugindo portanto ao escopo do presente trabalho.
Fazemos além disso a ressalva de que a presente fenomenologia refere-se ao sentimento de burrice, e não à burrice em si. Isto que se poderia presumir uma filigrana semântica ganha corpo e sentido ao nos lembrarmos de que a pior burrice é aquela que não se sabe estúpida - estando, portanto, anterior a qualquer possibilidade de sentimento. Assim, os diferentes sentimentos de burrice descritos abaixo possuem em comum o fato de necessariamente sucederem um estado de burrice bruta, não-pensada. Qualquer apontamento para uma Fenomenologia da Burrice, portanto, constitui um exercício de otimismo e de fé na cognição, pois implica você já ter superado o estágio da burrice sem-noção e adentrado o estágio da burrice que pode ser nomeada, descrita e pensada. Ou seja, uma burrice com um pouquinho mais de dignidade.
Uma vez expostas estas considerações iniciais, deixemos os sentimentos falarem por si próprios.
Angústia da ignorância, modo quantitativo. Você entra numa biblioteca ou na Livraria Cultura, detém-se diante da banquinha da FFLCH ou da gôndola de livros da Casa do Pão de Queijo, e pronto: advém a fria constatação de que você leu, no máximo, 1% de tudo o que está ali.
Angústia da ignorância, modo qualitativo. Versão ligeiramente sofisticada da AI modo quantitativo, este sentimento lhe acomete toda vez que você lê uma lista de melhores livros do ano, do Brasil, do mundo ou de todos os tempos, e se dá conta de que não leu a Bíblia, nem Ulisses, nem Grande Sertão nem o Philip Roth novo. A dura realidade é que você leu o Evangelho Segundo o Espiritismo aos 15 anos, ouviu falar em Ulisses no inevitável curso de teoria crítica pelo qual passou feito um foguete na graduação, fingiu entender os contos de Guimarães Rosa pro vestibular e só comprou um livro de literatura norte-americana recentemente porque a Oprah recomendou, e mesmo assim você ainda não se decidiu a lê-lo.
Perda total e momentânea das capacidades cognitivas. Esta modalidade do sentimento de burrice tangencia, como nenhuma outra, a burrice emocional. Acontece após momentos de extremo prazer - tipo a degustação da feijoada da minha avó -, de extrema tristeza - tipo a reiteração diária de que o ex-amor da sua vida, talvez menos ex do que você gostaria que fosse, nem lembra que você existe -, ou de extrema perturbação dos sentidos - tipo o contato com um paciente em sofrimento profundo. Toda a sua capacidade intelecutal e todo o seu corpo voltam-se para o processamento dessas experiências emocionalmente intensas, que consomem até a gasolina exigida no processamento dos cálculos matemáticos mais básicos. E, quando a gasolina do cérebro entra na reserva, este curioso órgão recorre às respostas que menos combustível demandam e portanto mais rápido nos acometem: os clichês. Vai daí - para não sairmos do campo da matemática - que, quando tomados pela perda total e momentânea das capacidades cognitivas, somos incapazes de somar 2 e 3 - mas, para calcular 2 +2, lembramos imediatamente de Caetano e não duvidamos de que a resposta seja cinco.
Burrice extra-umbigo ou Burrice retrospectiva. Recebe o primeiro nome por se tratar do sentimento de burrice advindo da dificílima constatação de que o mundo extrapola o espaço demarcado pelos lados do meu umbigo; o segundo, porque a experiência de a posteriori que aqui se vive é mais marcante do que nos outros casos. Cabe um exemplo pessoal. Lendo Desonra, romance que se passa na África do Sul cujo personagem principal é professor de literatura na Universidade do Cabo, surpreendi-me questionando a mera existência de professores e alunos naquele país - com que então existe na África do Sul algo diferente de AIDS, macacos e Nelson Mandela? A grande vantagem deste sentimento de burrice é que, de tão constrangedor, ele propicia uma fome de conhecimentos ampla e imediata: preciso largar mão de ser besta e saber mais sobre a África do Sul pra semana passada, eu que na semana passada era burra e não sabia. E ainda por cima você desenvolve um mínimo de empatia pelos estado-unidenses que acreditam não haver nada no Brasil além de AIDS, macacos e Pelé.
Burrice que não era pra ser. Essa é a pior de todas. Ao contrário da anterior, na qual você se descobre ignorante num assunto que não pertence ao seu campo de especialidades, aqui você se percebe pouco mais do que uma débil mental em algo que, até um minuto atrás, tudo em seu universo lhe indicava tratar-se de um assunto firmemente assentado sobre o seu umbigo. No meu caso, os assuntos são falar inglês e pensar com alguma lógica. Afinal, a Sandy não tinha elogiado meu inglês ontem? (Não é a Sandy que você está pensando, ô rapá, vá ler o post ali de baixo.) E tudo bem que eu ache o Seinfeld sexy - mas, quando se trata de julgamento intelectual, consigo diferenciar Paulo Coelho de Paulo Freire, né? Ou será que não? A verdade é que, ao estudar para o Graduate Record Examination e não conseguir solucionar problemas básicos de analogia, já não sei de mais nada.
Fazemos além disso a ressalva de que a presente fenomenologia refere-se ao sentimento de burrice, e não à burrice em si. Isto que se poderia presumir uma filigrana semântica ganha corpo e sentido ao nos lembrarmos de que a pior burrice é aquela que não se sabe estúpida - estando, portanto, anterior a qualquer possibilidade de sentimento. Assim, os diferentes sentimentos de burrice descritos abaixo possuem em comum o fato de necessariamente sucederem um estado de burrice bruta, não-pensada. Qualquer apontamento para uma Fenomenologia da Burrice, portanto, constitui um exercício de otimismo e de fé na cognição, pois implica você já ter superado o estágio da burrice sem-noção e adentrado o estágio da burrice que pode ser nomeada, descrita e pensada. Ou seja, uma burrice com um pouquinho mais de dignidade.
Uma vez expostas estas considerações iniciais, deixemos os sentimentos falarem por si próprios.
Angústia da ignorância, modo quantitativo. Você entra numa biblioteca ou na Livraria Cultura, detém-se diante da banquinha da FFLCH ou da gôndola de livros da Casa do Pão de Queijo, e pronto: advém a fria constatação de que você leu, no máximo, 1% de tudo o que está ali.
Angústia da ignorância, modo qualitativo. Versão ligeiramente sofisticada da AI modo quantitativo, este sentimento lhe acomete toda vez que você lê uma lista de melhores livros do ano, do Brasil, do mundo ou de todos os tempos, e se dá conta de que não leu a Bíblia, nem Ulisses, nem Grande Sertão nem o Philip Roth novo. A dura realidade é que você leu o Evangelho Segundo o Espiritismo aos 15 anos, ouviu falar em Ulisses no inevitável curso de teoria crítica pelo qual passou feito um foguete na graduação, fingiu entender os contos de Guimarães Rosa pro vestibular e só comprou um livro de literatura norte-americana recentemente porque a Oprah recomendou, e mesmo assim você ainda não se decidiu a lê-lo.
Perda total e momentânea das capacidades cognitivas. Esta modalidade do sentimento de burrice tangencia, como nenhuma outra, a burrice emocional. Acontece após momentos de extremo prazer - tipo a degustação da feijoada da minha avó -, de extrema tristeza - tipo a reiteração diária de que o ex-amor da sua vida, talvez menos ex do que você gostaria que fosse, nem lembra que você existe -, ou de extrema perturbação dos sentidos - tipo o contato com um paciente em sofrimento profundo. Toda a sua capacidade intelecutal e todo o seu corpo voltam-se para o processamento dessas experiências emocionalmente intensas, que consomem até a gasolina exigida no processamento dos cálculos matemáticos mais básicos. E, quando a gasolina do cérebro entra na reserva, este curioso órgão recorre às respostas que menos combustível demandam e portanto mais rápido nos acometem: os clichês. Vai daí - para não sairmos do campo da matemática - que, quando tomados pela perda total e momentânea das capacidades cognitivas, somos incapazes de somar 2 e 3 - mas, para calcular 2 +2, lembramos imediatamente de Caetano e não duvidamos de que a resposta seja cinco.
Burrice extra-umbigo ou Burrice retrospectiva. Recebe o primeiro nome por se tratar do sentimento de burrice advindo da dificílima constatação de que o mundo extrapola o espaço demarcado pelos lados do meu umbigo; o segundo, porque a experiência de a posteriori que aqui se vive é mais marcante do que nos outros casos. Cabe um exemplo pessoal. Lendo Desonra, romance que se passa na África do Sul cujo personagem principal é professor de literatura na Universidade do Cabo, surpreendi-me questionando a mera existência de professores e alunos naquele país - com que então existe na África do Sul algo diferente de AIDS, macacos e Nelson Mandela? A grande vantagem deste sentimento de burrice é que, de tão constrangedor, ele propicia uma fome de conhecimentos ampla e imediata: preciso largar mão de ser besta e saber mais sobre a África do Sul pra semana passada, eu que na semana passada era burra e não sabia. E ainda por cima você desenvolve um mínimo de empatia pelos estado-unidenses que acreditam não haver nada no Brasil além de AIDS, macacos e Pelé.
Burrice que não era pra ser. Essa é a pior de todas. Ao contrário da anterior, na qual você se descobre ignorante num assunto que não pertence ao seu campo de especialidades, aqui você se percebe pouco mais do que uma débil mental em algo que, até um minuto atrás, tudo em seu universo lhe indicava tratar-se de um assunto firmemente assentado sobre o seu umbigo. No meu caso, os assuntos são falar inglês e pensar com alguma lógica. Afinal, a Sandy não tinha elogiado meu inglês ontem? (Não é a Sandy que você está pensando, ô rapá, vá ler o post ali de baixo.) E tudo bem que eu ache o Seinfeld sexy - mas, quando se trata de julgamento intelectual, consigo diferenciar Paulo Coelho de Paulo Freire, né? Ou será que não? A verdade é que, ao estudar para o Graduate Record Examination e não conseguir solucionar problemas básicos de analogia, já não sei de mais nada.
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