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segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Pequeno tratado sobre a consolação: considerações sobre o "não era pra ser" e o "podia ser pior"

De uma unha quebrada à morte de uma pessoa, da perda de um guarda-chuva à perda de um passaporte, parece-me que os enunciados "não era pra ser" e "podia ser pior" dividem a humanidade em dois grandes estilos de consolação. Diga-se logo de cara que, na morte, sobrevém uma terceira corrente consolatória: a dos que dizem que o morto "descansou". Mas, como até para descansar é preciso estar vivo, descartaremos qualquer análise mais profunda desta terceira via, por consistir ela na escolha preferencial daqueles que não têm a mais remota idéia do que dizer nas situações em que nada há a ser dito - saindo-se, então, com afirmações rigorosamente desprovidas de qualquer sentido. "O morto descansou" é afirmação de logicidade comparável a "o morto foi à praia e tomou um sorvete". Felizmente, as pessoas não se lembram de dizer que unhas, guarda-chuvas ou passaportes descansam. Ainda há esperança para a humanidade.

Voltemos então às duas correntes que constituem o objeto de estudo deste tratado. "Não era pra ser", a primeira delas, é versão ligeiramente modificada de "Deus sabe o que faz". Perdeu o guarda-chuva? Não era pra ser. Afinal, você não merece andar por aí com um guarda-chuva de 1,99 - mesmo que, para manter a classe, você precise levar um temporal na cabeça antes de comprar um novo guarda-chuva por 4,99. Sua unha quebrou? Deus sabe o que faz: com as unhas perfeitas, você se sentiria mais confiante e sexy do que o recomendável no seu primeiro vinho & filme com aquele sujeito; a unha quebrada lhe fará lembrar que você não é tão poderosa quanto pensa (afinal, se não consegue manter nem as unhas no lugar, que dirá a cabeça), refreando-a de dar logo no primeiro encontro e protegendo-a assim de dissabores futuros.

Mas só por este parágrafo, quem me conhece saberá que não sou exatamente fã do "não era pra ser", pois acredito em guarda-chuvas de 1,99 e em dar no primeiro encontro - embora, naturalmente, sinta uma inveja contida de quem só transita na chuva sob guarda-chuvas italianos e está tão acima dos prazeres sensoriais que é capaz de subordiná-los às regras da Revista Claudia. Mas digressiono.

A verdade é que não sou grande apreciadora do "Deus sabe o que faz" pelo fato de esta consolação possuir apenas 33,33% de probabilidade de estar correta. E isso não tem necessariamente a ver com a minha religiosidade, ou falta dela. Pois mesmo supondo que eu fosse uma pessoa religiosa, daquelas que acredita que Deus sempre sabe o que faz, isso não seria suficiente para me convencer de que eu e as pessoas em geral sempre sabemos o que fazemos. Portanto, a perda do guarda-chuva ou o quebramento da unha até podem ter sido obra divina – mas, e se não foram? E se Deus fez tudo certo, e eu ou algum infeliz é que fez tudo errado? E se todo mundo (incluindo Deus) fez tudo certo, e essa força misteriosa chamada acaso (alguns chamam-na demônio) interveio*? O fato é que se trata de possibilidades – a ação de Deus, do homem ou do acaso – igualmente prováveis, e jamais conheceremos a resposta correta para cada caso.

Por isso, este não é um argumento que propriamente me convença. O que não quer dizer que eu não me sinta profundamente comovida quando alguma pessoa querida o apresente a mim – desde que eu sinta que a pessoa em questão está firmemente convicta de que os 33,33% de Deus são os que valem. Do contrário, se o argumento é dito só por dizer, fica com o mesmo peso de “o morto foi à piscina”. Intenção é tudo.

Ou quase. Pois nem a mais bela intenção, pescada das profundezas mais recônditas do inferno, ajuda a quem quer que seja quando o argumento é “podia ser pior”. Porque vejam – eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas estou aqui, escrevendo este post. E pergunto – por acaso o fato de vocês saberem que eu podia estar roubando e matando torna este post uma vírgula melhor ou mais louvável?

O grande problema do argumento “podia ser pior” é que, apesar de irrefutável, seu oposto simétrico também o é. Perdeu o passaporte? Podia ser pior: podia ter morrido alguém. Mas também podia ser melhor: a gente podia ter conseguido um upgrade para a primeira-classe. Mas ninguém pensa nisso – ninguém pensa no quanto as coisas poderiam ser melhores do que se esperava que fossem – quando algo pior do que o esperado acontece. E por quê? Porque, se pensassem nisso, ficariam deprimidos. Assim como ficam eufóricos quando se dão conta de que, eba, o importante é que não morreram! Mas depressão e euforia, aqui, são estados de espírito que os argumentos de “podia ser assim ou assado” manipulam a seu bel prazer, dependendo da natureza do assim e do assado. O “podia ser pior” é o antidepressivo receitado inconseqüentemente pelo clínico geral; a pílula da felicidade tão efetiva quanto falsa.

Por tudo isso, prefiro a consolação que advém dos fatos. E o fato é que perder o passaporte e ter uma viagem cancelada no dia da partida é ruim e jamais será bom – se fosse, eu desejaria essa experiência para as pessoas de que gosto, mas por mais que eu tente, só consigo desejá-la para aquelas que feriram o meu orgulho ou afrontaram a minha inteligência. Assim como é fato que perder os shows a que eu já estava preparada para assistir – principalmente a Maria Schneider regendo Sky Blue – também é incrivelmente decepcionante.

Mas também é fato que – e aproveitando para responder à pergunta do Lima com relação à programação musical de NY: “é sempre assim, ou você deu uma mega-sorte?” – sim, tio, é sempre assim, não foi sorte. E, frente a esse fato inquestionável – “sempre haverá lindas coisas a ouvir em NY” – é certeza que em março a programação musical estará, no mínimo, tão acachapante quanto a que vocês viram alguns posts abaixo.

Outro fato é que não mais patinaremos no Wollman Rink – assim como é fato que andaremos de bicicleta pelo parque. É fato que em março teremos a possibilidade (pequena, mas ainda assim uma possibilidade) de conhecer o bebê dos Tatini. É fato que não será desta vez que verei nevar (lembram-se da caipirice anteriormente referida?), e é fato também que, graças a isso, não precisaremos comprar botas e casacos. É fato que passaremos os nossos aniversários lá – e é fato que passar o aniversário em NY é o melhor presente de aniversário que eu poderia pedir (tirando os metafísicos, tipo muita saúde, muita felicidade e muito sexo). É fato que economizaremos mil mangos (lembrando, mais uma vez, que um mango nos E.U.A. vale um dólar), o que significa mais vestidos para embasbacar o Sayid e menos dívidas no cartão de crédito.

Sim – ao fim e ao cabo, não tenho dúvidas de que a viagem em março tem tudo para ser até bem melhor do que a que havíamos planejado para janeiro. Mas eu só preciso dos fatos para chegar a essa conclusão – dos fatos e da solidariedade dos que me querem bem, independentemente dos argumentos que venham a me apresentar.

* Sobre as condições de possibilidade que permitem a articulação das idéias de Deus e acaso num mesmo sistema de pensamento, ver Santo Agostinho. Ou algum outro filósofo que ninguém lê, para que ninguém se atreva a refutar a tese apresentada neste post.

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