Carta a mim mesma no futuro
Querida Camila,
Posso dizer que lhe conheço razoavelmente bem, ainda que não tenhamos sido apresentadas; faltam-me, no entanto, alguns dados, todos periféricos ao objetivo desta carta. Não sei quantos anos você tem, onde mora ou o que faz da vida. Sei, não obstante, que algumas coisas permanecem: o amor à música e o horror às uvas passas; o espanto com o ser humano; seu pai, suas tias, sua avó e a Bel. Provavelmente permanecem também coisas que aos 26 anos você não imaginava que seriam duradouras nem tampouco constitutivas da sua personalidade. E permanecem, se tudo correu bem, alguns desejos formados ao longo de muitos meses de gestação psíquica.
Por exemplo, o desejo de amores. Que universo pode estar contido em duas desenxabidas letras: ES. Você largou o osso, Camila. Abriu mão de um amor natimorto para se dedicar a amores vivos. Esta é uma conquista de cuja importância só você pode saber. A partir dela, você virou adulta, sem volta e sem desculpas. Você ficou livre para se deixar prender mais uma vez.
E com isso você sofreu. O momento em que lhe escrevo foi quando você se deu o direito de sofrer - de sofrer de verdade. Porque você se abriu por completo ao prazer, sem medo dos riscos que isso lhe acarretava. E, agora que as amarras que a prendiam foram cortadas, você pôde dimensionar o tamanho daqueles riscos - proporcional à honestidade da sua entrega. Então você se sentiu feliz, e não quis outra coisa para a sua vida: você desejou, para sempre, poder amar desse jeito. Agora, neste passado que não tenho como saber se lhe é recente ou distante, você descobriu o prazer de se desamarrar. Porque é só isso, e apenas isso, o que lhe permite amarrar-se de novo. E muito lhe apraz estar amarrada.
Então, Camila, se por acaso você estiver novamente passando pelo processo de se desamarrar - não importa quem tenha desfeito o(s) nós - eu gostaria de lhe lembrar algumas coisas que me têm sido extremamente prolíficas. Coisas práticas que têm-me feito melhorar. Desamarrar por completo, não sei quando; sei que isso já terá acontecido há muito quando você estiver a ler esta carta, mas agora me é impossível dimensioná-lo. Não importa. Importa lembrar-lhe que você se cuidou e deixou-se cuidar neste momento crucial de agora. Afinal, não deixo de estar vivendo uma segunda gestação psíquica, e gestações não se controlam; no máximo, faz-se o pré-natal com um analista. Dizem que o segundo parto costuma correr melhor que o primeiro, devido à menor ansiedade da mãe. Imagino que seja verdade. Assim como imagino que Houdini deve ter ganhado muito em rapidez e agilidade ao longo de anos de desamarração. E percebo que não consigo me decidir entre uma metáfora e outra, pois ambas se completam: é desamarrar aqui para gestar uma pessoa nova - eu mesma - lá.
Seguem então algumas dicas - não de analista, de parteira mesmo - do que você pode tentar fazer da próxima vez em que viver um processo semelhante. Tenho certeza de que, até lá, você terá criado outra metáfora para designá-lo.
- Leia. Muitos livros ao mesmo tempo, de diferentes autores. Converse. Com muitos amigos, que trazem diferentes histórias. Retome. As filmografias do Bergman e do Fellini. Envolver-se com outras pessoas (reais ou inventadas), além de ser o que mais lhe interessa na vida, terá nesta hora a vantagem de ampliar a sua perspectiva sobre o seu próprio sofrimento. Assim será mais fácil se lembrar de que seu umbigo não está para o universo assim como a estação da Sé para o metrô de São Paulo.
- Não deixe de retornar ao seu umbigo. Não é necessário fingir que está tudo bem. Não tenha medo de reconhecer que está tudo muito estranho, e que você não sabe quando deixará de estar. Não tenha pressa de que a estranheza passe - e, se tiver, não se culpe por isso.
- Estude um novo idioma. Mergulhe na gramática. Descubra novas estruturas gramaticais - descubra que há modos diferentes de pensar. Há modos diferentes de ser.
- Deixe que lhe papariquem. Que sua família e suas amigas a visitem e lhe tragam sorvete.
- Fique sozinha. Reserve a sexta à noite para não se sentir obrigada a nada.
- Cozinhe para si própria.
- Tome um vinho diferente por semana.
- Ouça discos antigos. Os mais amados. Afinal, você já está lendo, vendo e aprendendo coisas novas o suficiente. É preciso retornar a si própria em algum momento. Ouça apenas o que você sabe de cor, e cante junto (daí a necessidade da solidão.) Aos poucos você verá como é fácil inverter os versos de mestre Marçal: não choro mais / meu consolo é cantar.
- Reencontre uma pessoa amada. Uma de quem você saiba que qualquer separação, mesmo que dure anos, é apenas temporária.
- Ouça discos antigos. Mais, e de novo. Deles você não terá de se separar, nunca.
- Escreva no blog. (Espero que você ainda tenha um blog.) Ficou ruim? Ótimo, blog é para isso mesmo. Ficou bonzinho? Melhor: é capaz que alguém se deixe tocar pelo que você escreveu.
Espero que esses conselhos lhe sejam de alguma ajuda. Mas se não forem, no pasa nada: o importante é que eles estão me ajudando agora. É preciso apenas que uma coisa esteja bem clara: você é capaz de melhorar. É só se lembrar de mim. Lembrar que, no primeiro dia, você conseguia fazer bem pouco mais que chorar.
E, quinze dias depois, você já podia escrever esta carta.
Posso dizer que lhe conheço razoavelmente bem, ainda que não tenhamos sido apresentadas; faltam-me, no entanto, alguns dados, todos periféricos ao objetivo desta carta. Não sei quantos anos você tem, onde mora ou o que faz da vida. Sei, não obstante, que algumas coisas permanecem: o amor à música e o horror às uvas passas; o espanto com o ser humano; seu pai, suas tias, sua avó e a Bel. Provavelmente permanecem também coisas que aos 26 anos você não imaginava que seriam duradouras nem tampouco constitutivas da sua personalidade. E permanecem, se tudo correu bem, alguns desejos formados ao longo de muitos meses de gestação psíquica.
Por exemplo, o desejo de amores. Que universo pode estar contido em duas desenxabidas letras: ES. Você largou o osso, Camila. Abriu mão de um amor natimorto para se dedicar a amores vivos. Esta é uma conquista de cuja importância só você pode saber. A partir dela, você virou adulta, sem volta e sem desculpas. Você ficou livre para se deixar prender mais uma vez.
E com isso você sofreu. O momento em que lhe escrevo foi quando você se deu o direito de sofrer - de sofrer de verdade. Porque você se abriu por completo ao prazer, sem medo dos riscos que isso lhe acarretava. E, agora que as amarras que a prendiam foram cortadas, você pôde dimensionar o tamanho daqueles riscos - proporcional à honestidade da sua entrega. Então você se sentiu feliz, e não quis outra coisa para a sua vida: você desejou, para sempre, poder amar desse jeito. Agora, neste passado que não tenho como saber se lhe é recente ou distante, você descobriu o prazer de se desamarrar. Porque é só isso, e apenas isso, o que lhe permite amarrar-se de novo. E muito lhe apraz estar amarrada.
Então, Camila, se por acaso você estiver novamente passando pelo processo de se desamarrar - não importa quem tenha desfeito o(s) nós - eu gostaria de lhe lembrar algumas coisas que me têm sido extremamente prolíficas. Coisas práticas que têm-me feito melhorar. Desamarrar por completo, não sei quando; sei que isso já terá acontecido há muito quando você estiver a ler esta carta, mas agora me é impossível dimensioná-lo. Não importa. Importa lembrar-lhe que você se cuidou e deixou-se cuidar neste momento crucial de agora. Afinal, não deixo de estar vivendo uma segunda gestação psíquica, e gestações não se controlam; no máximo, faz-se o pré-natal com um analista. Dizem que o segundo parto costuma correr melhor que o primeiro, devido à menor ansiedade da mãe. Imagino que seja verdade. Assim como imagino que Houdini deve ter ganhado muito em rapidez e agilidade ao longo de anos de desamarração. E percebo que não consigo me decidir entre uma metáfora e outra, pois ambas se completam: é desamarrar aqui para gestar uma pessoa nova - eu mesma - lá.
Seguem então algumas dicas - não de analista, de parteira mesmo - do que você pode tentar fazer da próxima vez em que viver um processo semelhante. Tenho certeza de que, até lá, você terá criado outra metáfora para designá-lo.
- Leia. Muitos livros ao mesmo tempo, de diferentes autores. Converse. Com muitos amigos, que trazem diferentes histórias. Retome. As filmografias do Bergman e do Fellini. Envolver-se com outras pessoas (reais ou inventadas), além de ser o que mais lhe interessa na vida, terá nesta hora a vantagem de ampliar a sua perspectiva sobre o seu próprio sofrimento. Assim será mais fácil se lembrar de que seu umbigo não está para o universo assim como a estação da Sé para o metrô de São Paulo.
- Não deixe de retornar ao seu umbigo. Não é necessário fingir que está tudo bem. Não tenha medo de reconhecer que está tudo muito estranho, e que você não sabe quando deixará de estar. Não tenha pressa de que a estranheza passe - e, se tiver, não se culpe por isso.
- Estude um novo idioma. Mergulhe na gramática. Descubra novas estruturas gramaticais - descubra que há modos diferentes de pensar. Há modos diferentes de ser.
- Deixe que lhe papariquem. Que sua família e suas amigas a visitem e lhe tragam sorvete.
- Fique sozinha. Reserve a sexta à noite para não se sentir obrigada a nada.
- Cozinhe para si própria.
- Tome um vinho diferente por semana.
- Ouça discos antigos. Os mais amados. Afinal, você já está lendo, vendo e aprendendo coisas novas o suficiente. É preciso retornar a si própria em algum momento. Ouça apenas o que você sabe de cor, e cante junto (daí a necessidade da solidão.) Aos poucos você verá como é fácil inverter os versos de mestre Marçal: não choro mais / meu consolo é cantar.
- Reencontre uma pessoa amada. Uma de quem você saiba que qualquer separação, mesmo que dure anos, é apenas temporária.
- Ouça discos antigos. Mais, e de novo. Deles você não terá de se separar, nunca.
- Escreva no blog. (Espero que você ainda tenha um blog.) Ficou ruim? Ótimo, blog é para isso mesmo. Ficou bonzinho? Melhor: é capaz que alguém se deixe tocar pelo que você escreveu.
Espero que esses conselhos lhe sejam de alguma ajuda. Mas se não forem, no pasa nada: o importante é que eles estão me ajudando agora. É preciso apenas que uma coisa esteja bem clara: você é capaz de melhorar. É só se lembrar de mim. Lembrar que, no primeiro dia, você conseguia fazer bem pouco mais que chorar.
E, quinze dias depois, você já podia escrever esta carta.
Marcadores: recordar elaborar
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