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sábado, 19 de abril de 2008

Carta a mim mesma no futuro

Querida Camila,

Posso dizer que lhe conheço razoavelmente bem, ainda que não tenhamos sido apresentadas; faltam-me, no entanto, alguns dados, todos periféricos ao objetivo desta carta. Não sei quantos anos você tem, onde mora ou o que faz da vida. Sei, não obstante, que algumas coisas permanecem: o amor à música e o horror às uvas passas; o espanto com o ser humano; seu pai, suas tias, sua avó e a Bel. Provavelmente permanecem também coisas que aos 26 anos você não imaginava que seriam duradouras nem tampouco constitutivas da sua personalidade. E permanecem, se tudo correu bem, alguns desejos formados ao longo de muitos meses de gestação psíquica.

Por exemplo, o desejo de amores. Que universo pode estar contido em duas desenxabidas letras: ES. Você largou o osso, Camila. Abriu mão de um amor natimorto para se dedicar a amores vivos. Esta é uma conquista de cuja importância só você pode saber. A partir dela, você virou adulta, sem volta e sem desculpas. Você ficou livre para se deixar prender mais uma vez.

E com isso você sofreu. O momento em que lhe escrevo foi quando você se deu o direito de sofrer - de sofrer de verdade. Porque você se abriu por completo ao prazer, sem medo dos riscos que isso lhe acarretava. E, agora que as amarras que a prendiam foram cortadas, você pôde dimensionar o tamanho daqueles riscos - proporcional à honestidade da sua entrega. Então você se sentiu feliz, e não quis outra coisa para a sua vida: você desejou, para sempre, poder amar desse jeito. Agora, neste passado que não tenho como saber se lhe é recente ou distante, você descobriu o prazer de se desamarrar. Porque é só isso, e apenas isso, o que lhe permite amarrar-se de novo. E muito lhe apraz estar amarrada.

Então, Camila, se por acaso você estiver novamente passando pelo processo de se desamarrar - não importa quem tenha desfeito o(s) nós - eu gostaria de lhe lembrar algumas coisas que me têm sido extremamente prolíficas. Coisas práticas que têm-me feito melhorar. Desamarrar por completo, não sei quando; sei que isso já terá acontecido há muito quando você estiver a ler esta carta, mas agora me é impossível dimensioná-lo. Não importa. Importa lembrar-lhe que você se cuidou e deixou-se cuidar neste momento crucial de agora. Afinal, não deixo de estar vivendo uma segunda gestação psíquica, e gestações não se controlam; no máximo, faz-se o pré-natal com um analista. Dizem que o segundo parto costuma correr melhor que o primeiro, devido à menor ansiedade da mãe. Imagino que seja verdade. Assim como imagino que Houdini deve ter ganhado muito em rapidez e agilidade ao longo de anos de desamarração. E percebo que não consigo me decidir entre uma metáfora e outra, pois ambas se completam: é desamarrar aqui para gestar uma pessoa nova - eu mesma - lá.

Seguem então algumas dicas - não de analista, de parteira mesmo - do que você pode tentar fazer da próxima vez em que viver um processo semelhante. Tenho certeza de que, até lá, você terá criado outra metáfora para designá-lo.

- Leia. Muitos livros ao mesmo tempo, de diferentes autores. Converse. Com muitos amigos, que trazem diferentes histórias. Retome. As filmografias do Bergman e do Fellini. Envolver-se com outras pessoas (reais ou inventadas), além de ser o que mais lhe interessa na vida, terá nesta hora a vantagem de ampliar a sua perspectiva sobre o seu próprio sofrimento. Assim será mais fácil se lembrar de que seu umbigo não está para o universo assim como a estação da Sé para o metrô de São Paulo.

- Não deixe de retornar ao seu umbigo. Não é necessário fingir que está tudo bem. Não tenha medo de reconhecer que está tudo muito estranho, e que você não sabe quando deixará de estar. Não tenha pressa de que a estranheza passe - e, se tiver, não se culpe por isso.

- Estude um novo idioma. Mergulhe na gramática. Descubra novas estruturas gramaticais - descubra que há modos diferentes de pensar. Há modos diferentes de ser.

- Deixe que lhe papariquem. Que sua família e suas amigas a visitem e lhe tragam sorvete.

- Fique sozinha. Reserve a sexta à noite para não se sentir obrigada a nada.

- Cozinhe para si própria.

- Tome um vinho diferente por semana.

- Ouça discos antigos. Os mais amados. Afinal, você já está lendo, vendo e aprendendo coisas novas o suficiente. É preciso retornar a si própria em algum momento. Ouça apenas o que você sabe de cor, e cante junto (daí a necessidade da solidão.) Aos poucos você verá como é fácil inverter os versos de mestre Marçal: não choro mais / meu consolo é cantar.

- Reencontre uma pessoa amada. Uma de quem você saiba que qualquer separação, mesmo que dure anos, é apenas temporária.

- Ouça discos antigos. Mais, e de novo. Deles você não terá de se separar, nunca.

- Escreva no blog. (Espero que você ainda tenha um blog.) Ficou ruim? Ótimo, blog é para isso mesmo. Ficou bonzinho? Melhor: é capaz que alguém se deixe tocar pelo que você escreveu.

Espero que esses conselhos lhe sejam de alguma ajuda. Mas se não forem, no pasa nada: o importante é que eles estão me ajudando agora. É preciso apenas que uma coisa esteja bem clara: você é capaz de melhorar. É só se lembrar de mim. Lembrar que, no primeiro dia, você conseguia fazer bem pouco mais que chorar.

E, quinze dias depois, você já podia escrever esta carta.

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