Gabriela e o recalque
A organização tem seus problemas. Trinta e um de dezembro, seis horas da tarde e Gabriela viu-se sem ter o que fazer. A parte que lhe coubera na preparação da ceia de fim de ano fora das mais simples: lavar e levar a salada. Nada diz café-com-leite tanto quanto uma salada. Aos vinte e três anos, era o que ela havia voltado a ser. Neste Ano Novo, nem peru e nem champanhe: café com salada. E leite. O café escorrendo pelas dobras do alface, o leite infiltrando-se na polpa do tomate. Gabriela sentiu nojo. Sentia nojo de quatro a oito vezes por dia. Nunca de algo que lhe entrasse por algum dos sentidos - nada de fora podia abalá-la. Nojo de pensamentos.
Só de sua mãe podia sentir nojo e outras duas ou três coisas que tinha preguiça de nomear. Trinta e um de dezembro, seis horas da tarde, tarefa antecipadamente cumprida: Gabriela rumou para a casa da mãe, munida de uma salada e um vazio. "Filha, que bom que você chegou cedo, vamos conversar. Senta." Gabriela sabia que não queria conversar e sabia que chegara mais cedo para sentir o fastio de quem é obrigado a conversar não querendo conversar.
"Filha, como você está?"
Há uma semana a filha dispensara Astolfo, namorado de quatro anos e oito meses. Era solidariamente chamado de Tó pelo resto do mundo, mas Gabriela não era o mundo: era mulher de Astolfo.
"Filha, o que deu em você?"
Tó-Astolfo queria casar.
"Filha, não tinha mais química?"
Gabriela sente um princípio de pontada de nojo que não chega a incomodar.
"Ele não se preocupava com o seu prazer sexual?"
Tó-Astolfo não se preocupava com muita coisa.
"Ele queria loucuras na cama?"
Gabriela levanta uma perna e uma nádega intentando mudar de posição, mas desiste e deixa que repousem no mesmo lugar.
"É isso, ele queria loucuras na cama."
Gabriela sabe onde a mãe está para chegar.
"E você é uma recalcada."
Se a culpa não era de ninguém, a culpa só podia ser dela: uma recalcada. Para todos poderem respirar aliviados.
"Mãe, eu que não quis saber dele."
"Porque você é uma recalcada."
Gabriela sabia que sentia nojo e agora estava aprendendo a sentir-se recalcada: recalque era não querer Tó-Astolfo na cama, louco ou são.
Achou este sentimento menos difícil do que o nojo e no dia seguinte mandou fazer um adesivo para o carro:
2008 - Eu Vivo o Ano Feliz e Recalcada
E assim viveu.
Só de sua mãe podia sentir nojo e outras duas ou três coisas que tinha preguiça de nomear. Trinta e um de dezembro, seis horas da tarde, tarefa antecipadamente cumprida: Gabriela rumou para a casa da mãe, munida de uma salada e um vazio. "Filha, que bom que você chegou cedo, vamos conversar. Senta." Gabriela sabia que não queria conversar e sabia que chegara mais cedo para sentir o fastio de quem é obrigado a conversar não querendo conversar.
"Filha, como você está?"
Há uma semana a filha dispensara Astolfo, namorado de quatro anos e oito meses. Era solidariamente chamado de Tó pelo resto do mundo, mas Gabriela não era o mundo: era mulher de Astolfo.
"Filha, o que deu em você?"
Tó-Astolfo queria casar.
"Filha, não tinha mais química?"
Gabriela sente um princípio de pontada de nojo que não chega a incomodar.
"Ele não se preocupava com o seu prazer sexual?"
Tó-Astolfo não se preocupava com muita coisa.
"Ele queria loucuras na cama?"
Gabriela levanta uma perna e uma nádega intentando mudar de posição, mas desiste e deixa que repousem no mesmo lugar.
"É isso, ele queria loucuras na cama."
Gabriela sabe onde a mãe está para chegar.
"E você é uma recalcada."
Se a culpa não era de ninguém, a culpa só podia ser dela: uma recalcada. Para todos poderem respirar aliviados.
"Mãe, eu que não quis saber dele."
"Porque você é uma recalcada."
Gabriela sabia que sentia nojo e agora estava aprendendo a sentir-se recalcada: recalque era não querer Tó-Astolfo na cama, louco ou são.
Achou este sentimento menos difícil do que o nojo e no dia seguinte mandou fazer um adesivo para o carro:
2008 - Eu Vivo o Ano Feliz e Recalcada
E assim viveu.
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