Ouro Preto #1
É quase meia-noite e acabo de chegar de um atendimento daqueles que benza-me Deus. Ainda assim, ou talvez especialmente por isso, não posso me conter nem mais um segundo: preciso espalhar urgentemente para o mundo inteiro – ou para os três leitores deste blog, o que dá quase na mesma – que (atenção!)... Meninos, eu vi. Ou melhor: eu ouvi.
EU OUVI O MELHOR SHOW DE UM PIANO TRIO DA MINHA VIDAAAAAAAAAAA!!!! AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!
Pronto, espalhei. Resta agora contar um pouquinho mais sobre como isso se deu.
Foi inesperado. Fui para Ouro Preto para ouvir Hang Gliding – e foi exatamente isso o que aconteceu. Só que também aconteceu mais.
Voltei para casa cantando Lambada de Serpente.
Em primeiro lugar, a constatação – surpreendente em sua obviedade – de que não é só com Keith Jarrett e Brad Mehldau que se faz uma canoa (tá, tá, gente, a metáfora é fraca, eu sei, mas lembrem-se, agora já passa de meia-noite, o atendimento não teve pé nem cabeça etc. Mereço um desconto).
Vamos ao que interessa. Muito se fala, no jazz, em “encontrar a própria voz” – a voz com a qual se possa improvisar e comunicar emoções e sentidos por meio da música. Bem: Aaron Goldberg certamente tem a sua. Mas não é isso o mais lindo e raro. O que marcou esta hora e meia de música como uma das mais fundamentais de toda a minha vida não foi a capacidade de o pianista expressar a si próprio, mas sua habilidade em expressar a voz inerente a cada uma das composições que tocou – tanto as próprias quanto as alheias.
Explico. Nunca até este show eu havia ouvido versões tão lindas e convincentes de canções do Tom tocadas por um grupo de jazz. E olha que a primeira delas foi Luiza – uma música tão perfeita, tão difícil de arranjar, quase nunca regravada... E não é que ele o fez? E fez assim: apresentou o tema em uníssono com o baixo, uma solução simples e elegante. E depois Luiza virou uma mid-slow waltz à la Question & Answer (sim, minha referência para trios, quaisquer que sejam os instrumentos em questão, sempre será o Pat Metheny Trio). Funcionou maravilhosamente bem. E a harmonia? Quer coisa mais difícil do que rearmonizar uma música do Tom? Se o cara não muda nada, bom, eu perco ligeiramente o interesse, como ouvinte. Por outro lado, se o cara muda tudo, é 100% de chance de que não ficará nem de perto tão bom quanto o original. A típica situação do bicho contra o qual não adianta ficar ou fugir. E, tanto em Luiza quanto em Inútil Paisagem – que virou uma balada, tradicional, sentida – manteve-se a harmonia original, com algumas sutis e importantíssimas modificações. Quando menos se esperava – ou melhor, quando mais se esperava ouvir um acorde conhecido – vinha algo diferente e surpreendente. E sempre de muito bom gosto.
E aí teve Lambada de Serpente – a música que saí de lá cantando, dormi sonhando e no dia seguinte acordaria assobiando, soubesse eu assobiar. Mas sobre essa felizmente não preciso escrever nada, porque tem um pedacinho dela aqui. Corram lá, ouçam e depois me digam.
E quando eu achava que a sensibilidade do pianista restringia-se ao cancioneiro nosso, mais uma vez fui remetida ao surpreendente-que-é-óbvio: sensibilidade não tem nacionalidade, e Isn’t She Lovely me fez sentir tão American quanto eu sei que Aaron Goldberg é brasileiro.
Sobre o trio. O baixista, irmão musical do pianista, eu já conhecia e gostava de outros carnavais – agora, naturalmente, passei a adorar. Muitas vezes, a execução era menos perfeita que a intenção – em bom português, o cara desafina – mas, estranhamente, isso não me incomodou em nada; afinal, o que estava em jogo não era uma execução sem falhas de nenhuma ordem, mas uma execução sensível, em sintonia com o que vinha do piano. O baterista, embora não compartilhasse da intimidade dos dois, foi perfeito: preciso e econômico, atendo-se ao básico na exposição dos temas e soltando-se um pouco mais em polirritmias nas perguntas e respostas (de novo...) com o piano.
Do pianista, que será que me chamou mais a atenção? Ainda não sei se descobri, pois essas coisas se sente mais do que se diz. Além da beleza do toque, do bom gosto nos arranjos e rearmonizações e de tudo o mais que já falei até aqui – acho que foi a mão esquerda dele. As inovações rítmicas. Nada mais sonífero que um pianista de jazz cuja mão esquerda repousa paquidermicamente em previsíveis quartas e quintas enquanto a mão direita corre para lá e para cá, lépida e fagueira, sem muito senso rítmico. Nada mais diferente dele. Que refresco, que alívio. Uma capacidade natural e fluida de criar frases rítmicas não-convencionais, belas, leves – uma conquista claramente advinda de horas de audição de música brasileira, possibilitando justamente a não-redução de tudo à melodia de Donna Lee.
Aaron Goldberg estudou Psicologia e Filosofia. Eu também.
Esse show, além de me emocionar, me inspirou. Quero poder ouvir os meus pacientes da mesma forma que esse cara pôde ouvir a música brasileira: descobrindo novas e verdadeiras possibilidades em cada pessoa / canção.
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