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sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Meios inesquecíveis

Acabo de viver uma história amorosa que, mal começou, terminou – o que acabou por me remeter à importância dos meios e recheios que dão substância às nossas vidas.

Decidi compartilhar com vocês, então, uma outra história que também começou e terminou bem rapidinho em minha vida: o livro do Sérgio Rodrigues, prontamente devorado em dois dias.

Diferentemente da história amorosa, porém, essa história literária permanecerá em mim por muito tempo. E, sobretudo, ela possui um meio muitíssimo bem constituído, capaz de costurar um fim sensacional a um começo absolutamente enojante e perturbador – e tudo isso sem deixar entrever a linha e os movimentos da agulha.

Então convido vocês a experimentarem As Sementes de Flowerville como quem come uma bolacha trakinas: atacando primeiro a massa de morango ou chocolate para então mordiscar os biscoitos.

Depois eu descrevo para vocês a minha experiência literária-costureira-gastronômica-emocional com o livro.

P.S.: Dri e Bel, vejam se esse trecho não dá o que pensar sobre On Arrogance...


***

Neumani acorda de ressaca. Tomando um café-da-manhã tardio atrás do jornal, quase 11 horas, olha para a foto do morro deslizado em algum bairro miserável da Cidade Velha. Ao lado dela, entre outros anúncios fúnebres, o tijolo gigante informa que um certo Goldenstein goza, se assim se pode dizer de um morto, do amor irrestrito de família numerosa e rica. Neumani vira a página pensando com desgosto no que o dia lhe reserva, muito matutar sobre a Fórmula da Sociedade Ideal, e a princípio fica vendo as letras diante de seu nariz, sem compreendê-las. De repente se lembra, inteiro, de um gordo buquê de sensações – o sonho do qual acabou de acordar.

Era um sonho caprichado na decoração de época: sala de jantar com mesa de pés-palitos, tampo de fórmica chapiscada, jarro de vidro translúcido cheio de pontas, mas tudo meio cinzento como numa TV com chiado, ou como se uma enceradeira zumbisse ao fundo lembrando Jesus & Mary Chain. A mãe e o pai estavam em casa mas não na cena, a presença deles se concentrava numa série de gemidos altos, indecentíssimos, por trás da porta trancada do quarto.

Neumani, apesar de adulto, se embolava no sofá da sala com Vica e Clara, seus melhores amigos de infância, uns sobre os outros, o que era morno e bom. Comiam toneladas de Diamante Negro, Vica sorria de lado e Clara usava um vestidinho curto, pernas magras e brancas, uma galáxia de sardas nas coxas onde se apoiavam as canelas peludas de Neumani. E nesse momento, inchado de orgulho e da maior felicidade que sentira na vida, ele anunciava solene que tinha decifrado o último teorema de Fermat.

Toma um gole de café, comovido. Que obra-prima de sonho. Vica e Clara entenderam perfeitamente a dimensão heróica de seu feito, e logo todos se abraçavam com lágrimas nos olhos, acabavam mais embolados do que antes no sofá, como uma criatura de seis braços e seis pernas.

Quantos anos tinha quando decidiu que desafiaria o maior enigma da história dos números, missão abraçada com bravura de menino? Oito, nove? Pois não era evidente que a esfinge se mantivera indevassável às mais poderosas mentes matemáticas do universo por todos aqueles séculos para se revelar a ele, justamente? Foi o que deliberou quando leu na biblioteca do colégio a história de Fermat, e estava deliberado. Numa idade em que os mais espertos de sua geração se engajavam em debates seriíssimos sobre Kikos Marinhos, Twilight Zone, Apollo 11, o Mug, o Speed Racer, os poderes relativos de National Kid, Ultraman e Jaspion, Neumani fez diferente: transformou uma questão estratosférica de matemática pura na razão de ser de sua vida.

O cubo da hipotenusa jamais será igual à soma do cubo dos catetos. Então prove, é que está. O quadrado, certo, o quadrado, sim: o teorema dos teoremas, o de Pitágoras. Acontece que tudo depois disso, o cubo, a quarta potência, a quinta, a milionésima, a infinitésima, todas elasnunca mais que a hipotenusa e a soma dos catetos conseguem se encontrar. Pois então demonstre, prove matematicamente o que acabou de dizer. E ninguém consegue, é que está.

No meio de mais uma bicada no café, foi de um golpe que as letras que fitava há algum tempo no jornal fizeram sentido. Antes não tivessem feito. Era o título de uma pequena notícia internacional na coluna da direita, metade inferior da página:


Matemático inglês
decifra enigma do
teorema de Fermat


Imediatamente, a relação de Neumani com o tempo se desacertou por completo. Meses comprimiram-se em segundos, ele envelheceu e morreu antes que o café esfriasse na xícara, enquanto ficava para sempre de bobeira olhando aquelas letras, que agora tinham voltado a perder o sentidocomo se significar algo fosse uma manobra para enlouquecê-lo, coisa provisória, breve passagem entre nada e coisa alguma. Como assim, um matemático inglês? Como assim, Fermat? Esse papel não estava reservado para ele? A impressão do sonho, tão forte segundos atrás, se dissipou no ar feito fumaça de cigarro, deixando apenas a memória dolorida do destino real de seus melhores amigos de infância, ambos mortos antes dos primeiros hormônios da puberdade, um após o outro, meses a separá-los – Vica ao cair do galho mais alto de uma mangueira gigante e quebrar o pescoço no chão pedregoso, Clara atacada por um enxame de abelhas africanas que cobriu seu corpo de ferroadas, uma para cada sarda.

Ele? Não, ele não: ele ficou. Precisava sobreviver porque tinha um compromisso. Um compromisso com Fermat. vinha um matemático inglês, um escroto – e agora?

Agora, Neumani compreendeu que tinha perdido de vista para sempre os loucos deuses da matemática que um belo dia achou de acreditar que um dia, este mais belo que aquele, iam salvá-lo por fim.

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