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domingo, 9 de setembro de 2007

Agar

Dormir na mesma cama que ela. Aprender a espantar pesadelos com ela (filha, se aquela mulher feia vier te seqüestrar de novo, diz pra ela que ela pode te seqüestrar à vontade, que quando você acordar vai estar aqui com a mamãe). Comer o brigadeiro que ela fazia. Aprender a ler poesia com ela. Aprender a ler com ela. Aprender a tocar a música do reloginho com ela. Sentir-me a pessoa mais especial do mundo quando ela aplaudia. Esperar pelo momento em que ela leria minhas redações. Aprender a ouvir música com ela (filha, agora presta atenção no que o baixo está fazendo e tenta cantar junto). Morrer de vontade de usar as roupas dela. Passar a tarde em seu colo enquanto ela me ensinava português, geografia e matemática. Mostrar o meu diário para ela (filha, tem muito menino aqui, de qual deles você gosta mais?). Ouvi-la lendo Drummond, Vinícius e a Turma da Mônica. Ouvi-la tocando a coda de Cais. Ouvi-la cantando Cais. Decorar o Soneto da Fidelidade. Conversar com ela em francês. Conversar com ela em português. Conversar com ela enquanto ela tomava banho. Ouvi-la imitando a Elis enquanto ela tomava banho (já conheço os passos dessa estrada). Ficar com preguiça ao observá-la fazendo ginástica. Aprender a encolher a barriga em alternativa ao cansaço. Bach e Beatles e o meu primeiro contato com o inglês: tchustchubi sambada rock’n’roll music. Caetano e Gil: não me esqueço de querer compistar. Noel: quando o apito da fábrica de tecidos vem ferir os meus ouvidos. Tom Jobim e Bambalalão toda manhã. Ser reconfortada por ela ao descobrir que Papai Noel não existia. Treinar a carregar o buquê para o meu casamento. Treinar a valsa para o meu casamento. Brigar com ela por não deixar que o meu casamento acontecesse na semana seguinte. Fazer as pazes e falar para ela do menino de que eu gostava. Votar na Erundina por ela. Aprender por que as formigas não caem quando sobem na parede (filha, você quer mesmo que eu te explique o que é a lei da gravidade?). Aprender por que o rio da minha aldeia é mais bonito do que o Tejo. Acostumar-me com a idéia de que Deus não existe, pois se existisse não haveria criança passando fome na rua. Aprender que a França era o lugar mais maravilhoso e mais distante do mundo, o mais admirado e o mais odiado, pois que a tirava de mim uma vez por ano (será que minha filha vai achar isso de Nova York?). Viajar com ela para a França e perceber que a maravilha estava toda nela. Perceber o orgulho dela quando senti saudade do meu pai e do piano. Aprender que sapato e bolsa com a mesma estampa é brega. Aprender que assistir novela é brega, mas e daí, pode ser divertido. Aguardar ansiosamente para assistir à primeira exibição do clipe de Black or White com ela. Ir a um show do Milton com ela. Ir ao show do Caetano com ela e gostarmos ambas principalmente de Black or White. Sentir-me adulta ao voltar para casa às três da manhã depois de uma festa com ela. Sentir-me criança por ainda não saber amarrar os cadarços aos seis anos de idade (aos vinte e cinco, estou quase ). Sentir-me abandonada quando ela me deixou sozinha no ensaio da apresentação de balé. Sentir-me enciumada quando todas as crianças do ensaio por ela se apaixonaram ao ouvi-la contar uma história. Rapunzel e Rumpletistekin. Sentir-me envergonhada (e um pouquinho convencida) quando os meninos do hotel em que estávamos, sem saber quem eu era, comentaram que ela era a mulher mais gostosa que eles tinham visto. Sentir-me extremamente convencida quando os meus amigos diziam que eu tinha a mãe mais legal do mundo. Passar as tardes na Aliança Francesa brincando de professora. Passar as tardes na Aliança Francesa brincando. Ouvir a aula dela do lado de fora da sala e ter a certeza de que um dia eu estaria ali dentro. As festas da Aliança francesa: muita música e muita comida (será que aprendi a amar música e comida com ela?). Observá-la absorta, lendo, todos os dias, sempre: aprendi a amar literatura com ela.

Ser vestida por ela. Ser penteada por ela. Ser perfumada por ela. Ser fotografada por ela. Ser amada por ela.

***

Faz quinze anos que minha mãe morreu. Tive pesadelos com carros desgovernados, direções que não respondiam, freios que aceleravam.

O terror maior de todos: abrir o armário e deparar-me com o vazio.

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