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sábado, 25 de outubro de 2008

Um conto, para variar

Depois do esmagamento


Fui uma criança bissexual; não posso mais escapar desse reconhecimento tardio. A prima era igual a mim, só que melhor: loira, rica e culta. Pois com que então uma menina de sete anos sabia falar inglês tão perfeitamente? Não me ocorria que, aos sete anos, o inglês de minha prima inglesa regulava perfeitamente com meu português de brasileira, nem tampouco que toda sua imaginada riqueza advinha tão-somente de sua condição de estrangeira e habitante do país que minha mãe fazia questão de visitar todos os anos. Mas, na real, cultura e riqueza eu digo aqui, agora – na época, na doce época de nossas brincadeiras de médico e paciente, esses eram elementos mais sentidos do que pensados. Na pré-histórica época, o único de seus traços que chegava a tomar forma em meu pensamento eram seus longos cabelos doirados: eu, última criança do planeta a refestelar-se com o Tesouro da Juventude, já ia bem avançada no curso de deterioramento da auto-estima promovido por obras que invariavelmente atribuíam “chusmas de caracóis doirados” às crianças de alma pura. A Anna faltavam os caracóis, mas isso em nada me incomodava: o mais importante era descobrir de que maneira o ouro havia se deslocado desde os aros de algum anel até grudar nos cabelos da minha prima, sacando fora todo o negrume.

O negrume, desde sempre, era eu, que enganava minha mãe e só tomava um banho a cada dois dias; eu e meus cabelos que tampouco eram “negros como a pena brilhante do urubu”. Meus cabelos eram marrons e castanho não constava da lista de adjetivos contemplada pelo TJ. Pensando bem, eu não era negrume coisa nenhuma, isso de novo é agora, sou eu tentando criar pontezinhas mimosas entre acontecimentos que se eu esperasse mais um pouco perigavam morrer na memória. A verdade sem mimos nem afinos é que eu era essa massa castanha que não sabia o que era nem a que vinha – também, ufa, né, sete anos, vamos combinar. Não por acaso e muito menos à toa, portanto, o papel que sempre me coube representar em nossas brincadeiras hospitalares foi o de paciente: “doutor, não sei o que eu tenho…”

Ela era o médico cujo procedimento consistia em despir-me e, vestido ele, esmagar-me com o peso de seu corpo - enquanto perguntava, perguntava e esmagava, onde é que doía. É claro que a dor nunca chegava, e hoje não sei se a localização da dor permanecia imprecisa pelo meu desejo de que o exame não terminasse nunca ou pelo medo do tratamento que viria em seguida. Do jeito que escrevi parece que as duas alternativas são a mesma coisa. Talvez seja, e eu nunca reparei? Querer que tudo continue igual versus o medo de que fique diferente.

Agora seria o momento de dizer que meu primo era o oposto de Anna, pois era grande, feio, índio e meio burrinho para o meu gosto. Aos quinze anos, nem português ele falava direito. E também era pobre e morava no interior do Brasil. Seus cabelos eram o “negro liso e brilhante” das crianças misteriosas, e ouso acrescentar à iconografia do TJ que eram cabelos rebeldes também. Os verdadeiros cabelos rebeldes não são os desgrenhados, esses qualquer um passa a mão e arruma. Cabelo rebelde é aquele que não se torce às vontades de nenhum pente e nenhuma mão. E os cabelos de meu primo eram absolutamente impermeáveis ao meu toque. Luís, portanto, era rebelde e muito mais estrangeiro que a estrangeira Anna, pois na pré-histórica época em que produtos e pessoas importadas eram garantia de qualidade e segurança, tudo o que vinha do Brasil era olhado com reservas e desprezo.

Então vejam que o certo seria dizer que meu primo Luís e minha prima Anna eram o negrume e o doirado, o tosco e o refinado. Só que, não se esqueçam, eu não sou uma pessoa certa: ainda sou castanha de raiz. E Anna, quando era a Anna que eu mais gostava, era homem. Luís também. (Também, ele não teria inteligência nem imaginação para ser qualquer coisa que não ele mesmo.)

Luís me arrastava para debaixo da cama e, entre imprecações contra o estrado – não sei como ele conseguia se machucar com o estrado da cama, mas ele dava um jeito –, introduzia a língua na minha boca e ali ficava, rodando, sempre para a direita. Um dia sua irmã menor nos surpreendeu e perguntou se estávamos nos beijando. Ele respondeu que não, que estávamos cagando. A menina correu assustada, e não sei como não fugi junto com ela. Então como é que é, a gente estava cagando na boca um do outro?! E aí deu-se o milagre. Porque enfim eu decidi que, mesmo que aquilo fosse sujo, uma caganeira dos diabos. Mesmo assim, eu queria pagar para ver. Eu queria sentir a língua dele circulando para o outro lado. Eu queria que a minha língua fizesse alguma coisa. Eu já queria, depois de tão pouco tempo, perguntar, atravessando colchões, lençóis e estrados:

Depois do esmagamento, vem o quê?

Criança, fui bissexual, e isso é certo. Mas minha xis-sexualidade atual não me importa: ocupam-me os esmagamentos e as distensões, e sobretudo as línguas - e sobretudo os corpos.

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