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segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Ainda sobre a antropologia dos estado-unidenses: por que a Psicanálise não tem vez por aqui

A livraria da minha universidade tem uma seção dedicada aos livros obrigatórios de todas as disciplinas da universidade inteira. É o máximo: você procura a matéria que está fazendo e encontra tudo separadinho numa prateleira, podendo geralmente optar entre livros novos e usados. Quis o destino que a prateleira bem em frente aos cursos de espanhol fosse dedicada justamente aos cursos de psicologia. Sempre que passo por lá não resisto a uma espiadinha, mesmo já sabendo o que irei encontrar. E o que encontro é uma profusão de manuais: de estatística, doenças, comportamentos, desenvolvimento infantil, desenvolvimento escolar, desenvolvimento sexual. Muitas somas, classificações e linhas do tempo; nenhuma teoria. Apenas guias práticos de diagnóstico e pesquisa. Skinner, Piaget, Vygotsky, Freud, Jung, Rogers - ainda não me deparei com nenhuma dessas referências barbudas pelas prateleiras de Tulane. Dos grandes hits, até agora, apenas o DSM-IV.

Sobre o paradeiro de Skinner e quejandos, naturalmente não posso dizer muita coisa. Mas posso tentar pensar um pouco a respeito da total ausência da Psicanálise na clínica psicológica estado-unidense. Assim, sem compromisso mas com algum afinco, segue um levantamento brainstórmico de diferenças irreconciliáveis entre a Psicanálise e a cultura estado-unidense:

- Concepção de tempo: o estado-unidense quer resultados pra-já. Não temos petróleo? A solução é drill, baby, drill - mesmo que as reservas nacionais sejam suficientes para apenas seis meses de consumo interno. Nada de planejamentos a longo prazo com investimentos dispendiosos em fontes de energia alternativa. Obama está à frente nas pesquisas, ufa, mas seu projeto energético está entre os pontos mais impopulares do seu programa de governo. E se existe um tratamento que exige longos e dispendiosos investimentos com vista a resultados sabe-se lá quando, este tratamento é a Psicanálise.

- Concepção de história: o estado-unidense acredita que ontem determinou hoje que determinará amanhã. Um dia de cada vez e um após o outro. E é claro que a Psicanálise costuma ser vista desta mesma forma: a relação com os pais, quando éramos criancinhas, é a causa dos nossos problemas da vida adulta. Não surpreende que o pensamento freudiano tenha sido assimilado desta maneira, com o esquecimento do conceito de sobredeterminação inconsciente - somos por demais apegados à linearidade do tempo para aceitar a radicalidade da hipótese de um "tempo polifônico".

- Concepção de categorias: aqui é a terra onde preto é preto, branco é branco, macaco é macaco, viado é viado e não se fala mais nisso. Naturalmente, a Psicanálise pode muito bem servir a propósitos classificatórios estigmatizantes. Mas, de maneira geral, teorias como a da sexualidade infantil contribuíram para uma significativa relativização - embora não se tenha chegado propriamente à abolição - das categorias de normal e patológico.

- Concepção de força de vontade: o estado-unidense tem fé religiosa no poder da sua força de vontade individual. A auto-ajuda é a grande religião contemporânea. É verdadeiramente contagiante, e digo isso sem um pingo de ironia: na minha primeira semana aqui, chegando no hotel todas as noites sem aguentar ver uma sacola do wal-mart na minha frente, que alento deparar-me na TV com um pastor que repetia convictamente "everything is going to be alright", e que eu estava mais perto da vitória do que eu imaginava. Metáforas bélicas e tudo o mais. E que é a Psicanálise senão a mais completa negação de tudo isso? Afinal, o ponto central da teoria e do método psicanalíticos, sobre o qual nenhum psicanalista jamais divergirá, é que nossa força de vontade, por maior e mais bem-intencionada que seja, não vale tanto assim - esta é a implicação primeira do conceito de inconsciente. Se somos determinados por algo que desconhecemos, talvez não seja tão proveitoso eu ler todos os livros de auto-ajuda que o pastor e a Oprah me recomendaram.

Alguns consideram a Psicanálise pessimista em seu cerne. Imagino que nunca deixarei de discordar dessa posição - se a fé do estado-unidense é na força de vontade, a fé da Psicanálise está no próprio fazer psicanalítico: a Psicanálise acredita dispor de um método capaz de intervir eficazmente no inconsciente. Quer maior otimismo do que isso? Depois ainda dizem que a pulsão de morte, a repetição e a análise interminável apontam para um beco sem saída terrível e de todo pessimista. De certa forma, é verdade: esses são conceitos que apontam para o fim do universo passível de exploração psicanalítica. E por que isso deveria ser ruim? Se pessimismo for sinônimo de demarcação dos limites de alguma coisa, então me incluam na fileira dos pessimistas, por favor.

E assim a Psicanálise vai passando ao largo das prateleiras da minha universidade. E, a bem da verdade, também vai passando muito longe das prateleiras do Brasil - afinal, apenas uma pequena parcela da classe média-alta intelectualizada do eixo Rio-São Paulo submete-se ao tratamento psicanalítico. Mas o mais importante não é isso, e sim constatar que os estado-unidenses somos todos nós. Talvez as características aqui descritas sejam mais exacerbadas na Terra de Marlboro, mas até agora não escrevi sobre nada que vá muito além do império do senso-comum, que como sabemos é transoceânico.

Desenvolver um pouquinho de sensibilidade incomum é um esforço diário, quase sempre infrutífero.

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