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domingo, 19 de outubro de 2008

Ainda as observações antropológicas: as aulas nos EEUU

Chega outubro, chegam os comentários: impressionante como passou rápido, daqui a pouco já é Natal! Junto de outubro e dos comentários, naturalmente, chega também uma infestação prematura de papais noéis e bolotinhas vermelhas pela cidade. Todo ano, tudo igual, inclusive aqui. Só que, este ano, o Natal deixou de ser meu marcador preferido para o fato de que o tempo passa, o tempo voa (e a poupança dos estado-unidenses... melhor nem falar nada). O grande evento que parece ter chegado antes da hora em 2008 é o meio do semestre.

Porque o semestre está na metade, e só agora é que estou no ponto para ele começar.

Existem duas grandes diferenças entre as aulas de agora e as aulas a que eu estava acostumada antes, e elas referem-se ao volume de leituras solicitadas ao aluno e à participação destes em classe. Pode não parecer, mas esses dois pontos estão profundamente relacionados; vamos ver se até o final do post consigo desenvolver essa idéia.

Quando fui tentar explicar a primeira diferença a uma amiga por e-mail - mas sem explicitar que se tratava de uma diferença, isto é, apenas descrevendo uma característica das aulas que venho tendo -, ela saiu-se com essa: claro, sei do que você está falando; na USP é a mesma coisa, a gente é solicitado a ler as meditações cartesianas como se fossem gibi.

Isso me espantou de um tanto. Porque sim, é verdade que a USP tem essa fama, e é possível que há um ano e pouco eu compartilhasse dessa mesma opinião. Agora, isso mudou.

Vamos aos exemplos concretos que tanto me agradam: minha disciplina preferida no curso de filosofia consistiu na discussão da primeira metade da primeira meditação cartesiana. Um semestre inteiro - e note-se que o semestre brasileiro é bem mais longo que o estado-unidense - para discutir meia meditação. Havia as leituras complementares, claro - o livrinho do Franklin, que rapidamente transformou-se no herói da sala, e o livro de um grande comentarista fodão do Descartes, cujo nome não me lembro, e que escrevia em inglês. Na prática, todo mundo só lia o Franklin mesmo - não se considerava que os alunos tivessem a obrigação de ler em outro idioma. Eu até li uns trechos do cara fodão, que me ajudaram sobremaneira - mas logo acabei desistindo, porque a leitura, além de densa, nunca era abordada em aula.

E a aula consistia simplesmente em comentários muito detalhados do texto, por parte - é claro - do professor. Passávamos uma hora e meia ou duas horas ouvindo meu saudoso professor esmiuçar dois ou três parágrafos cartesianos. Nesse tempo todo, ele era interrompido umas três ou quatro vezes por alguma pergunta dos alunos, que éramos aproximadamente cem. Uma dessas três ou quatro perguntas quase sempre era minha.

Claro que essa disciplina era muito mais lotada do que o normal - além de ser uma disciplina de graduação (que, por si só, sempre será mais lotada que qualquer disciplina da pós), tratava-se de uma disciplina do primeiro semestre da graduação - ou seja, antes de 90% dos alunos desistirem do curso. Mas, mesmo se a disciplina contasse com vinte pessoas, suponho que a diferença não seria muita - e digo isso baseada na minha experiência com outras disciplinas de pós-graduação na psicologia. A carga de leitura podia até ser um pouco maior e o número de alunos bastante menor - mas a estrutura das aulas era a mesma. O professor comentava o texto-base e os alunos interrompiam a exposição com suas perguntas aqui e ali. A estrutura da aula comportava variações, sem dúvida, mas quase sempre sobre esse mesmo tema.

Nada mais diferente do que ocorre por aqui, a julgar pelas três disciplinas que estou cursando. Fico imaginando a viabilidade de uma aula inteira sobre dois míseros parágrafos, e só me ocorre o seguinte: mas que diabo eu, euzinha e meus coleguinhas, teríamos a dizer sobre dois parágrafos de Descartes de modo a preencher duas horas de aula? Porque convenhamos - o texto de Descartes e o texto de um marciano ou venusiano que caísse na terra agorinha neste instante, dava exatamente na mesma. Europeus letrados do século XVII, marcianos e venusianos todos vêm de uma outra terra com pouquíssimo em comum com a nossa. Fica difícil sair falando sobre eles de uma perspectiva que não esteja absolutamente encharcada de etnocentrismo. E isso supondo que tivéssemos a ilusão de compreender alguma virgulinha de seus discursos. Porque geralmente o que acontecia é que entre Descartes e asdfg asdfg asdfg não havia diferença alguma.

E assim chegamos à imbricação entre as duas diferenças fundamentais das aulas daqui para as aulas de lá: o material de leitura para uma aula nunca consistirá em apenas dois parágrafos, porque quem faz a aula é o aluno - e vamos combinar que é mais fácil encontrar alguma coisa para comentar em trezentas páginas de discurso marciano que em dois parágrafos apenas. De 300 páginas, sempre se salvará alguma coisa. De apenas dois parágrafos, ou você realmente reflete a respeito e passa a semana desconstruindo aquele quebra-cabeça, ou danou-se.

Não que a gente não se dane da mesma forma com as 300 páginas, porque o ímpeto de entender tudo é muito forte - então eu leio três páginas e fico andando em círculos pelo meu quarto, em tentativas geralmente estéreis de quebrar minha cabecinha dura. Mas chega uma hora, e só recentemente esta hora chegou, que você percebe que o melhor a fazer é respirar fundo, sentar-se de novo e passar à página 4, ou você não chegará jamais na página 300 até a próxima aula.

Eis que se desvela, portanto, um dos mistérios do post anterior: meu oscilar entre desilusão e esperança tem tudo a ver com isso, com a sustentação desse estado de não-saber. Depois de três sonetos de Góngora em que tudo o que posso concluir é que ele parece realmente estar interessado em dar uma bigüizada numa moça boazuda, fico esperançosa porque pelo menos isso consegui entender, ou começo a chorar de desespero pensando que consegui entender apenas e tão-somente isso? Dúvidas, dúvidas.

Mas voltando às colocações gerais sobre as aulas de lá e de cá. Aqui, além das 300 páginas a mais que somos solicitados a ler, há também algo que se chama participação do aluno. Ainda não entendi direito os critérios da coisa, mas a lógica geral é a seguinte: falar em aula dá nota, ficar quieto tira nota. É realmente comovente ver todo mundo se esforçando para falar pelo menos uma frase em algum momento da aula, nem que seja "uau, como isso é interessante!", porque ficar quieto realmente não convém.

A conseqüência disso é que as aulas ficam muito mais dinâmicas e participativas, além de que os alunos efetivamente costumam ler pelo menos alguma coisa do que foi pedido. Por outro lado, essa obrigatoriedade da participação diminui a espontaneidade das aulas. Eu não tenho sofrido muito com isso porque desde sempre fui uma aluna mais ou menos participativa. Mesmo assim, há aulas em que eu gostaria de não abrir a boca nem para bocejar - e não há nenhuma explicação para isso, é só um desejo mesmo de ficar quietinha no meu canto, ouvindo mais do que falando. Mas não rola - pega mal. E aí é preciso fazer aquele esforço bizarro de encontrar alguma coisa para dizer que não seja tão idiota assim. Tem um lado positivo, esse esforço - como, de resto, qualquer esforço intelectual: aumenta a massa de tutano ou sei lá o quê. Mas, de maneira geral, eu gostava mais de saber que não havia problema em falar apenas quando me desse na telha.

Os professores, naturalmente, incentivam a participação dos alunos com mil perguntas. O momento "o professor vai falar", quando o há, acontece no início da aula, com o oferecimento de alguma contextualização sobre o que será discutido em seguida. Depois, seguem-se as perguntas - do professor para os alunos. Talvez esta não seja uma característica tão generalizável assim para todos os EEUU, mas o fato é que os três professores com quem venho tendo aula atualmente utilizam-se todos do método socrático.

Que é um método fantástico - apenas atrapalhado, a meu ver, pela tal obrigatoriedade da participação. Porque costuma acontecer o seguinte: os professores fazem perguntas que se dividem em fáceis e difíceis. As fáceis são aquelas que basta ter lido o texto para saber responder: o que fez o personagem X em tal e tal hora? Qual é a posição do autor a respeito da escravização dos índios? E assim por diante. As difíceis são todas as outras, ou seja, as que não têm resposta pré-definida: o que você tem a dizer sobre este texto, de um ponto de vista formal? Como as ações do personagem X se relacionam com a visão de mundo do autor? E assim desenvolve-se a aula.

Notem que, na disciplina sobre poesia, eu mal consigo responder às perguntas fáceis. Nas outras duas, porém, as fáceis geralmente são fáceis mesmo. E aí fica a dúvida: pensando no lance da participação, quando é que eu abro a boca, afinal? Porque, assim como qualquer outro aluno, eu poderia tranqüilamente responder a todas as perguntas fáceis - mas fica no mínimo esquisito sair recitando nomes de personagens toda lampeira para depois fechar a boca quando vem a pergunta sobre o que os benditos nomes podem querer dizer.

Então minha estratégia tem sido mesclar respostas fáceis com respostas difíceis, para não me ferrar muito. E na disciplina em que todas as perguntas invariavelmente são dificílimas, tenho tentado ler os textos críticos com todo o afinco, confiar nas orações da minha avó e entregar o resto nas mãos de Jacob.

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