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sábado, 27 de setembro de 2008

Inspiração, transpiração e o além

Quando tem início uma discussão sobre o processo criativo de uma obra de arte qualquer, e qualquer que seja a modalidade artística em questão, já se sabe que mais cedo ou mais tarde a metáfora sudorípara-respiratória será evocada: quanto, afinal, houve de transpiração e quanto de inspiração na criação desta obra?

Nunca deixo de me espantar, não com as respostas em si, mas com o próprio fato de que os artistas geralmente se dignem a respondê-la, sem sequer questionar as próprias implicações da pergunta: com que então uma obra de arte se limita a tantos por cento de uma dádiva que caiu do céu (proveniente do Senhor, do Demônio ou do Inconsciente) e outros tantos de um esforço laborioso? Com que então a arte resulta apenas dos caminhos e descaminhos psicológicos de um ser humano?

Bem, é claro que toda obra de arte invariavelmente resulta dos caminhos e descaminhos psicológicos de um ou de vários seres humanos (e isso evitando aquela discussão chata de será que os gregos tinham complexo de Édipo? e controvérsias assim). Então, é claro que a obra de arte é produto da ação de alguém, é obra humana (e isso evitando aquela discussão muitíssimo mais chata ainda de será que os computadores fazem arte? e a Mulher-Fruta, por sua vez, deveria ser considerada artista? e controvérsias assadas).

Texto vai, texto vem e nunca consigo escapar do melhor exemplo de fenômeno paradoxal que conheço: a famosa fraldinha-do-bebê-segundo-Winnicott. Porque é evidente que a fraldinha, para o bebê, representa a sua mãe. Mas, se fosse apenas isso, a fraldinha não teria a menor graça.

A grande graça da fraldinha é que ela transcende uma mera representação da mãe, na ausência desta.

A grande graça da obra de arte é que ela transcende a psicologia do autor, na ausência deste.

Então eu sempre acho estranho, muito estranho mesmo, quando algum artista chuta que para determinada criação artística lhe foram necessários, vá lá, x% de inspiração abençoada e 100-x% de trabalho totalmente desprovido de glamour. Em primeiro lugar, pela própria contradição embutida no cálculo: se x% veio de uma fonte que lhe é alheia e desconhecida, que independende dos seus esforços e que você não controla, como é que você pode estimar o tamanho de x? Em segundo lugar e principalmente, por tudo o que ultrapassa x e 100-x: que dizer daquilo, caro artista, que vai muito além de você e dos seus esforços individuais, na obra que não obstante você mesmo criou?

***

Mas não vim falar sobre arte, e sim sobre uma realização minha que, embora nada tenha de artística, é das coisas que mais me orgulho de haver criado - e tanto mais por consistir em uma criação conjunta.

Trata-se da única coisa a que, se me fizessem aquela pergunta-padrão dirigida aos artistas desprevenidos, eu responderia sem hesitar: 100%. Dos dois. 100% de inspiração e 100% de transpiração, no que pese a falta de sentido disso. Porque algumas coisas resultam tão abençoadas e bem-aventuradas em nossas vidas, que é preciso reconhecer: só muito 100% deve ter tornado isso possível. Sem que eu mesma me desse conta, eu devia estar muito inspirada quando conheci a Bel, e ela também. E, sabendo menos ainda, deve ter rolado uma transpiração danada de ambas as partes para chegarmos ao que somos hoje. Nada menos do que 100%, multiplicado por dois, é suficiente para dar conta desta relação que me deixa um pouco - e às vezes um muito - mais feliz, todos os dias, sempre.

Mas mesmo 100%, ainda que multiplicado por dois, vale muito pouco para as nossas parcas tentativas de descrever a realidade. Afinal, os números, se mal-e-mal me lembro daquela aula da oitava série, podem ser inteiros, racionais, reais ou complexos. E diz-me agora a Wikipedia que há também os números hipercomplexos, vejam se é possível! (Claro que é - daqui a um tempo inventam os números ip-ip-urra-complexos, alguém quer apostar?) Existem números - a maioria, por sinal - que vão muito além do que nós, que só chegamos até a oitava série, somos capazes de imaginar.

E existem amizades que vão muito além do que a transpiração e a inspiração podem fazer. Muito além de uma obra de arte.

Esta vai além, por exemplo, na medida em que a mãe dela é uma pessoa tão-mas-tão querida e fantástica, que veio aqui me visitar.

Confesso que foi divertido observar as reações das pessoas ao ouvir que minha best friend's mother veio para New Orleans passar um fim de semana comigo: "best friend's mother", jura? Te visitar? Como assim?

Até aqui, minha resposta vinha sendo: "pois é - assim".

Agora, eu acrescentaria também: "sabe o que é? Foi muita inspiração, é isso. E muita transpiração também. E, principalmente, muito de alguma outra coisa, que nunca poderei inteiramente definir ou explicar".

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