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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Luiza e eu

Depois de escrever este e este posts, fiquei pensando no meu jeito de ouvir letras de música, e não demorou muito para que eu me lembrasse da grande exceção à regra da "seqüência de sílabas fonéticas". Porque existe uma única música cuja letra, não sei como, memorizei de um jeito absolutamente peculiar. Este texto é uma tentativa de desdobrar esse "não sei como" em algumas palavras mais.

Luiza foi, sem dúvida alguma, a grande música da minha primeira infância: eu ansiava, com uma intensidade completamente nova para mim, por sua chegada no vídeo do Tom a que assistia todas as manhãs, depois de Bambalalão.

Disso eu me lembro, e me lembro também de que meu grande ideal de beleza e feminilidade nesses primeiros anos, além de minha mãe, era a mulherada da família do Tom Jobim - sua mulher, filhas e noras que desafinavam terrivelmente (mas isso eu não percebia muito bem, na época) quando fora do ambiente protegido do estúdio. Vai ver por isso minha mãe insistia que eu desse mais atenção para o Danilo do que para elas, e me estimulava a atentar para os outros instrumentos, além dos vocais. Sim, porque a grande graça de assistir ao vídeo estava em me postar diante do guidão da bicicleta ergométrica - que dava exatamente na altura da minha boca, era o microfone perfeito! - e cantar o máximo de linhas melódicas que eu conseguia, do show inteiro, de todos os instrumentos cujos sons eu era capaz de distinguir. Mais ou menos como o neto do Freud brincava de fort-da com o carretel, ou como as crianças em geral se relacionam com os filmes da Disney. Eu também assistia compulsivamente às produções Disney - principalmente Dumbo, numa antecipação sinistra do que estava por vir - mas nunca nada se aproximou da necessidade imensa que eu tinha de assistir àquele vídeo de novo, e de novo, e mais uma vez, e decorar cada nota visível e divisar outras tantas inventadas.

Coisa semelhante eu vim a viver depois com Monteiro Lobato, Pat Metheny, Thomas Ogden, LOST e tantos outros objetos de minha estima. Mas nunca com aquele mesmo sentimento de necessidade, com aquela mesma urgência de me reconectar com uma parte de mim mesma. Porque por mais que eu precise saber o que está acontecendo na ilha, não vou deixar de existir se por acaso a greve dos roteiristas se prolongar indefinidamente. Eu sou eu e LOST é LOST. Mas esse senso de que eu sou eu não existia com tanta clareza aos seis anos de idade: eu era eu tanto quanto era aquele homem tocando piano na TV. Aprender a tocar piano, naquelas condições, pareceu-me tão natural quanto aprender a ler ou usar garfo e faca corretamente.

Naquele vídeo, todo um mundo de objetos veio a ser internalizado e idealizado. Com o Tom eu me identificava; as mulheres, idealizava com um leve senso de estar fazendo algo errado ou proibido, pois minha mãe as reprovava. O Danilo eu também idealizava, mas com um distanciamento maior, pois sob influência de minha mãe passei realmente a considerá-lo muito superior a todas aquelas moças. O Paulo eu estranhava, na acepção freudiana do termo, pois já naquela época ele lembrava muito o Tom, ao mesmo tempo que não se confundia com ele.

Mas esses, os objetos-pessoas, eram os menos significativos. Havia, principalmente, os objetos-música - inicialmente, as tocadas no vídeo, e que foram se expandindo até chegar nos milhares de discos que habitam minha vida hoje. Lembro que desenvolvi uma reverência quase preconceituosa por Chega de Saudade, a "canção mais linda do mundo" - eu tinha vontade de bater em quem quer que ousasse questionar esta verdade auto-evidente -; que a melodia hipnótica de Retrato em Branco e Preto me acompanhava até durante as leituras de Turma da Mônica; que "borzeguim" virou uma palavra comum em meu vocabulário infantil.

Disso tudo me recordo; mas não lembro quem teve a idéia de fazer com que eu cantasse Luiza acompanhada por minha mãe ao piano. O fato é que isso passou a acontecer, e é aqui que se fazem necessárias algumas palavras no lugar do "não sei como".

Com certeza, eu já devia saber a letra - e mais ainda a melodia - de cor, como sempre segundo o esquema da "seqüência de sílabas fonéticas". Mas isso, para minha mãe, não devia ser suficiente. Imagino-a me explicando pacientemente que uma cantora de verdade não se limita a reproduzir fonemas com precisão: uma cantora de verdade está preocupada em interpretar a letra, como uma atriz interpreta suas falas numa peça ou filme.

A partir daí, é razoável supor que eu tenha ficado preocupadíssima em atentar para os significados embutidos nas palavras de Luiza, para poder cantá-la de modo a agradar minha mãe. Deve ter sido assim que cheguei a uma série de imagens que até hoje me acompanham toda vez que ouço, toco, canto ou penso em Luiza. Em itálico, a letra original; em fonte normal, sua interpretação por uma menina de seis - ou vinte e cinco - anos.

Luiza
(Tom Jobim)

Rua,

Uma lua cheia num céu bem escuro.*

Espada nua

Minha espada da She-Ha.

Bóia no céu imensa e amarela
Tão redonda a lua

A lua boiando na minha piscininha de armar.

Como flutua
Vem navegando o azul do firmamento
E no silêncio lento

A lua navegando de um lado para o outro nesta mesma piscininha.

Um trovador, cheio de estrelas

Um provador de roupas com cortinas pintadinhas de estrelas.

Escuta agora a canção que eu fiz
Pra te esquecer Luiza
Eu sou apenas um pobre amador

Um funcionário atrás de uma mesa com uma plaquinha onde se lê "amador".

Apaixonado
Um aprendiz do teu amor
Acorda amor
Que eu sei que embaixo desta neve mora um coração

Uma caverna de neve - diferente de um iglu porque a neve era fofinha - onde eu entrava e encontrava, escondido lá no fundo, um coração que a cada batida liberava um pouco de sangue e tingia a neve à sua volta de vermelho.

Vem cá, Luiza
Me dá tua mão

A Vera Fischer dando a mão pro Tom Jobim.**

O teu desejo é sempre o meu desejo
Vem, me exorciza
Dá-me tua boca
E a rosa louca

Uma rosa vermelha bem aberta, girando freneticamente em torno de seu próprio eixo.

Vem me dar um beijo
E um raio de sol
Nos teus cabelos

Um raio - não de sol, de tempestade mesmo - incendiando os cabelos da Vera Fischer.

Como um brilhante que partindo a luz
Explode em sete cores

Um diamante que vira um arco-íris.

Revelando então os sete mil amores

Um arco-íris de sete mil cores.

Que eu guardei somente pra te dar Luiza
Luiza
Luiza

* Nunca consegui aprender que a música começa com rua e não lua. Tenho ao menos o consolo de saber que o Almir Chediak também não aprendeu: no songbook Tom Jobim, tal qual na minha cabeça, Luiza começa com Lua.
** Esta música talvez seja a grande razão de eu sempre ter ido com a cara da Vera Fischer, mesmo na época em que ela era mais malhada pela imprensa.

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