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quarta-feira, 9 de julho de 2008

Entre o alívio e a procrastinação

Comecemos por um silogismo otimista - afinal, Freud já dizia que se cura uma neurose com outra (a de transferência); sendo assim, para curar uma síndrome da falsa importância, nada melhor do que se sentir mais falsamente importante ainda:

Chico Buarque joga campo minado.
Eu jogo campo minado.
Chico Buarque recorda ("Agora eu era o herói...").
Chico Buarque repete ("Morena de angola que leva o chocalho...").
Chico Buarque elabora ("Ah, se já perdemos a noção da hora...").
Eu recordo, repito e elaboro.
Chico Buarque é gênio.
Logo,
...
...
devo ser gênia.

***

Primeiro lembrei, para me acalmar, de uma lenda urbana segundo a qual Chico era adepto da paciência. E me deparei com a reportagem que a desmistifica: "Chego a ficar 40 minutos jogando paciência e campo minado antes de trabalhar no computador. Com a Internet seria uma loucura, sei que me viciaria". Li e pensei: "sei". Quando encontro uma entrevista posterior na qual ele admite:

"Antigamente, eu ficava jogando paciência, que era uma espécie de aquecimento dos dedos para você começar a escrever. E, às vezes, só aquecia. 'Hoje eu vou escrever meu livro', e aí sentava e ficava aquecendo o dedo. Uma hora, duas, três, quatro horas, e dizia 'não, agora vou desligar a paciência' (risos). Aí passava para a folha em branco, olhava, escrevia duas palavras, voltava para a paciência e desligava o computador. Durante todo o tempo em que escrevi meu livro, tinha esse ritual. E agora, em vez da paciência, tem o Google, sei lá, fazer uma pesquisa, ver uma sacanagem."

Porque convenhamos, essa história dos 40 minutos de joguinho e zero de navegação não convence ninguém - ou, ao menos, não dura muito tempo. Agora, devidamente viciado nas procrastinações que só a internet e os joguinhos de pontos infindáveis nos proporcionam, Chico Buarque derruba de um só golpe meu superego metidinho a besta e me permite refletir sobre essa estranha mania que me domina, sempre que algo de importante está para acontecer.

A paciência como desanuviadora das chaminés cerebrais é recurso tradicionalmente utilizado por autores em processo de escrita, como já admitiram LFV e J.K. Rowling. Esta última, na verdade, prefere campo minado, mas estou considerando como paciência qualquer jogo solitário com potencial viciante. A abrangência desta definição não invalida sua pertinência para este post, preocupado com o costume (vício? necessidade?) de paralisar o tempo e se dedicar desvairadamente a algo que não leva a nada.

O papel da paciência no processo de escrita é algo que conheço muito bem. Durante toda a fase final de redação do meu mestrado, eu passava os dias em frente ao computador com diversos livros e textos abertos na escrivaninha, no chão e no meu colo, e tantas outras janelas e abas de navegador abertas na tela. A paciência nunca saiu de lá.

Considero impossível determinar o ponto exato em que o jogo da paciência deixa de ser um necessário descanso para a alma e converte-se num refúgio covarde de quem não se crê capaz de concluir o presente parágrafo e iniciar o próximo. Para mim, a dinâmica sempre foi essa: a paciência começava como um recurso tão fundamental para a escrita quanto o toddynho e os cuidados do namorado; mas, ao contrário destes últimos, sempre transformava-se numa prisão da qual eu precisava lutar muito para sair. A sensação recorrente era de que, ao parar de jogar, eu já havia ultrapassado em muito o ponto imaginário a partir do qual o jogo se tornara nocivo.

Mas a escrita não é a única situação que impulsiona o jogo. Tenho jogado muita paciência esses últimos dias. Campo minado, mais especificamente. Descobri que não falta muito para eu me classificar no ranking do Authoritative Minesweeper e me consagrar como uma das jogadoras mais rápidas do Brasil. É necessário possuir escores de no máximo 6, 35 e 99 nos níveis iniciante, intermediário e avançado, respectivamente. As duas primeiras pontuações já estão garantidas: 5 e 34. Continuo muito distante da última, presa no 123, marca que já atingi perto de uma dezena de vezes. Descobri que esse empacamento na pontuação tem até nome: Síndrome de Elmar.

Ponho-me a jogar paciência compulsivamente sempre que alguma coisa sobre a qual tenho expectativas extraordinárias está para acontecer. Antes de agora, o último surto compulsivo aconteceu nas vésperas da viagem para NY & NOLA. Antes disso, nos dias que antecederam a defesa do mestrado.

É difícil admitir que durante algumas horas perco completamente a capacidade de fazer qualquer coisa diferente de clicar em numerinhos e distribuir bandeirinhas. Enquanto isso, estou pensando o tempo todo, freneticamente. O problema é que, quando paro de jogar, não lembro de nada em que pensei com tanto afinco durante tanto tempo. Sim, este é o próprio discurso do maconheiro. E talvez por isso Um Jogador esteja entre as histórias que mais me impressionam.

Uma hora, é preciso parar de jogar, e consegui-lo nunca é fácil. Mas esta não é a dificuldade principal. Difícil mesmo é não se considerar uma imprestável e irresponsável por chafurdar algumas horas no mais absoluto vazio existencial, virar Macabéa por um momento. É, enfim, não dar asas - ou antes, um machado - ao superego carniceiro.

Nessas horas, Chico Buarque ajuda.

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