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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Conhecer pelas paredes

"Habitual fretting about her children, her husband, her sister, the help, had rubbed her senses raw; migraine, mother-love and, over the years, many hours of lying still on her bed, had distilled from this sensitivity a sixth sense, a tentacular awareness that reached out from the dimness and moved through the house, unseen and all-knowing. Only the truth came back to her, for what she knew, she knew. The indistinct murmur of voices heard through a carpeted floor surpassed in clarity a typed-up transcript; a conversation that penetrated a wall or, better, two walls, came stripped of all but its essential twists and nuances. What to others would have been a muffling was to her alert senses, which were fine-tuned like the cat's whiskers of a old wireless, an almost unbearable amplification. She lay in the dark and knew everything. The less she was able to do, the more she was aware."

(Ian McEwan, Atonement. Capítulo 6, parágrafo 4 - grifo meu.)

São curiosas as associações que a gente estabelece. Poucas vezes li um retrato tão fiel de um funcionamento psíquico onipotente (ou, de forma mais precisa, onisciente - "she (...) knew everything"), e calhou que bem este retrato suscitou-me uma metáfora para o funcionamento psíquico esperado de uma situação tão desesperadamente impotente: a supervisão analítica.

Não se trata, em primeiro lugar, do desespero das donas-de-casa dos subúrbios estado-unidenses, do agitar frenético de braços do afogado: isso é desperateness, e estou falando de hopelessness. Que, junto da esperança, é o que precisa estar presente na experiência de supervisão: a desesperança de que se irá entender o paciente, e a esperança de que, a despeito de nós mesmos, ainda assim seremos capazes de fazer algo por ele.

Dessa desesperança, supervisor e supervisionando compartilham, ou gostariam de poder compartilhar. Porque muito mais freqüentemente cedemos à tentação de crer na mosquinha, outro ser mitológico da filosofia ocidental (prima do Gênio Maligno de Descartes e de parentesco ainda não determinado com Jacob de LOST). A mosquinha paradigmática é a que está junto do analista registrando o menor movimento e o mais remoto som emitidos pelo paciente, para depois... E aí é que está o diabo da mosquinha: por maiores que sejam suas capacidades observadoras, ela nunca consegue despejar as informações registradas no ouvido do supervisor, para felicidade deste e desespero (agora sim o das housewives) do analista. O desespero do analista é a certeza de que a mosquinha estava lá, como não, eu vi!, é achar a mosquinha uma burra e desejar que ela fosse um grilo falante ou pelo menos um bicho ligeiramente mais expressivo, é não tê-la capturado num vidro de geléia para levá-la ao supervisor e torturá-la até que diga a verdade. A mosquinha acaba sendo muito superior ao gravador ou à filmadora, pois tem mil olhos e não mente nunca, já que nunca diz nada. Alguns insistem em que ela não existe, mas estou para conhecer um analista que já não tenha pressentido ou desejado sua presença junto de si.

Só que o segundo diabo da mosquinha é que, para além de sua mudez contumaz, o bom supervisor não está nem um pouco interessado nela. Ele prefere os sons que ressoam através de duas paredes: sua subjetividade e a do analista supervisionado. Prefere os sons terrivelmente amplificados por essas paredes, sem ignorar os que podem estar sendo abafados. Tornar-se supervisor é treinar a capacidade de ouvir por entre paredes. Tá certo que os sons saem muito mais estranhos do que uma mosquinha seria capaz de reproduzir ou mesmo conceber - mais estranhos e bem mais próximos de uma realidade em que até os lacanianos, vejam vocês, podem se apaixonar.

Mas o terceiro diabo da mosquinha é que, mesmo sem mosquinha nenhuma, nunca se está a salvo do sentimento de onipotência. Emily Tallis, a personagem descrita no parágrafo que abre este post, nem cogita a possibilidade de suas assunções serem falhas, tamanha é sua confiança na epistemologia das paredes. O maravilhoso da descrição de Ian McEwan, na seqüência do texto, é deixar-nos vislumbrar, perdida entre uma série impressionante de acertos, uma suposição equivocada. E não uma suposição qualquer, pois que trata da filha mais velha Cecilia, efetivamente a mãe da família - posição social e psíquica que Emily, com todas as moscas e paredes do mundo, não pode fazer idéia do que é.

Confesso não fazer muita idéia do que é ser analista.

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