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domingo, 7 de outubro de 2007

A morte do cool

E de repente eu não era mais eu: era um ser flutuante e crítico que me observava e recriminava de cima pra baixo. Como você pôde deixar isso acontecer? Quantas vezes o André não te disse para não ficar parada dentro do carro? E de repente o crime era meu e de repente eu não sentia vergonha, mas o rosto queimava como se em reação à maior gafe da história do Oscar, o rosto queimava e não havia nada que eu pudesse fazer, pois eu agora era um ser flutuante. As bochechas ardendo nada tinham a ver com o ser, assim como nada tinha a ver com ele o estômago que revirava a cada nova curva traçada pelo carro. "Jesus abençoe", o ser ouve dizer. Ironia número 1: minha avó sempre recomendou lembrar Jesus em horas como essa - especificamente, seu sangue, o sangue do senhor Jesus. O ser não podia estar mais distante de pensar em Jesus naquela hora, ocupado que estava com outro sangue, o sangue que insistia em fluir e depositar-se em lugares que não lhe convinham. Não sei se foi efeito da bênção de Jesus, mas o ser flutuante eterizava-se cada vez mais, cada vez mais próximo de Jesus e cada vez mais distante da carne. O ser era tão pequenininho, tão grandioso. O ser preocupava-se com a aula de inglês do dia seguinte - quando é que eu iria prepará-la? este contratempo não estava nos meus planos -, o ser preocupava-se com o legado que eu haveria de deixar para a humanidade. O ser conseguia ser pequenino e grandioso ao mesmo tempo - e o André? Ele deve estar com ódio de mim, achando que dei o cano de propósito, que sou uma ex-namorada vingativa. Muito burro, esse ser, que fazia daquele amontoado de carne e sangue ali embaixo o centro do universo, mas um universo que o ser não podia atingir - o sangue corria destrambelhado, a carne comprimia-se e esticava-se, o sangue ameaçava corroer os ossos. Mas de tanto que se esforçou, o ser conseguiu, se aprumou e fez o sangue nadar mais rápido ainda para o nariz e as bochechas: e se eu morrer agora, como é que é, vou ver o túnel e vou pensar nos momentos felizes da minha vida? E aí como é que vai ser? Os momentos mais felizes da minha vida são... Esses? Com J.? Não, não, isso não pode ser, não é hora ainda. Eu não posso morrer antes das lembranças de J. E foi assim que o ser, por esse breve instante, acessou a carne. E logo voltou a ficar grandioso. O tal legado para a humanidade. Uma dissertação de mestrado? Só? E o doutorado, não vai ser? E filhos, não vou ter? Mesquinho e grandioso: se carne, osso & sangue ali embaixo resolverem se desfazer e se confundir, todo mundo vai ficar sabendo que não traduzi todos os textos que deveria, não preparei as aulas que precisava, não escrevi os relatos de atendimento a que me propus. Mesquinho de novo: ai, vai ser um saco acordar cedo amanhã. Ironia número 2: a frente do som do carro é encaixada no painel - carne, osso & sangue estão deitados no banco de trás, de costas para os bancos da frente - e o ser desta vez não está nem mesquinho nem grandioso, está curioso: ih, já pensou se eles ligam o som? The Birth of the Cool é o que lá está, lembra o ser, lembra o ser e se irrita, porque nada mais verdadeiro que o oposto disso: ali é a morte, a morte do cool, não tem nada de nascimento não, o cool é tudo o que não pode acontecer nas bochechas ali embaixo que o ser se esforça para cutucar de novo, e não consegue mais. "Dez minutinhos aí deitada", o ser ouve uma voz dizer, e o ser começa a contar em grupos de sessenta. Para sua surpresa, o ser é tomado pelo estômago, de repente o estômago, tão distante lá embaixo, controla tudo, não deixa o ser contar mais nada, perde-se a noção. Alguns outros grupos de sessenta se passam e agora não sei mais quem foi que viu, se o estômago ou o ser ou as bochechas, que a chave estava no contato e que eu já podia ir embora.

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