Ouro Preto #3
Correndo o risco de deixar este blog um pouco monotemático, convido-os mais uma vez a exercitar a vossa paciência através da leitura de mais um texto meu sobre música. Quem sabe antes do Natal eu consigo escrever sobre a Maria Schneider?
Joshua Redman Trio - Ouro Preto, 2007
Foi o primeiro show que lá vi. Quer dizer, o primeiro show show, de verdade. Eu já havia ouvido um pouquinho do disco novo, Back East, e gostado demais. A formação saxofone–baixo–bateria agrada-me bastante – paradoxalmente, são muitas as possibilidades harmônicas que se cria justamente a partir da ausência do piano, instrumento harmônico por excelência, pois isso me força a pensar a harmonia da música de uma forma diferente da habitual (e burra): afasto-me um pouco da concepção de harmonia como meras seqüências de acordes, conjuntos de notas tocadas em bloco, para me aproximar um pouquinho mais da harmonia como a estrutura subjacente à composição. Para mim, é como se uma banda sem piano ou guitarra/violão me tirasse um pouco da rotina, pois que me convida a prestar atenção nas notas que não são tocadas e que não fazem nenhuma falta, pois de alguma forma fazem-se ouvir internamente.
Bem; esse preâmbulo todo para dizer que eu já conhecia um pouquinho do disco novo (tinha ouvido as duas ou três primeiras músicas, talvez?) – e também para acrescentar que eu já tinha ficado particularmente entusiasmada com o tema que abre o disco, uma composição de Rodgers & Hammerstein. Portanto, fiquei muito feliz pelo fato de o show ter sido aberto justamente com esta música, que é daquelas que gruda de um jeito bom (o jeito ruim é o outro, isto é, aquele que nos faz querer arrancar a música de dentro como se fosse um câncer). Mas, o adjetivo mais preciso aqui não é “feliz”, e sim “surpresa”: surpreendi-me com uma coisa que nem era pra ser surpreendente, mas que felizmente nunca cessa de me surpreender. Graças a Deus, já ouvi muita música boa ao vivo, mas... Caros leitores, fazia um ano. Um ano, desde Nova York, que eu não ouvia jazz de verdade.
Não é minha intenção discutir aqui a Verdade platônica do jazz (o que é o jazz? ele está vivo? morto? vivo e cheirando mal? etc.), mas... Sabe quando você se esquece de que alguma coisa existe? Quando você passa por uma experiência, e aí esquece que aconteceu? Pois então: eu havia me esquecido de que esse tipo de música existe e é possível.
Eu havia me esquecido de que uma bateria pode soar tão bonito. Que a caixa soa diferente do ximbau, que soa diferente do prato, que soa diferente do outro prato, e que todos esses e outros timbres podem conspirar para criar melodias que interagem com aquelas tocadas por baixo e saxofone, em vez de soar tudo uma lata só. Mas isso era só o começo: eu havia me esquecido também da sensação de ouvir um baterista que swinga maravilhosamente sem precisar estourar os tímpanos de ninguém. Greg Hutchinson tem um domínio técnico do instrumento que é raríssimo de se ouvir, e que para mim transpareceu principalmente na dinâmica que, invariavelmente, cabe ao baterista construir. Pois, amigos, quem disse que o amor constrói ainda está para se dar conta de que, na verdade, é sempre o baterista que constrói. (Naturalmente, o “baterista médio” – o baterista Homer Simpson – destrói, mas isso não vem ao caso aqui.)
Eu havia me esquecido de que um baixista pode se apropriar tanto de um conjunto de músicas e conhecer tão bem a sua harmonia que a sua preocupação, visivelmente, há muito tempo deixou de ser xi-qual-é-o-próximo-acorde para virar eba-ouve-só-o-que-eles-estão-tocando. (Ah, e é claro que o fato de Matt Penman ser absolutamente lindo e sexy também não doeu nem um pouco.)
Eu havia me esquecido de tantas coisas relacionadas a um saxofone. Eu havia me esquecido de que alguém diferente do Wayne Shorter pode passar tão bem do tenor para o soprano, como quem passa do sorvete de belgian chocolate pro de macadamia nut brittle. (É, o som era bom assim.) Mas, principalmente, eu havia me esquecido de coisas relacionadas à improvisação em geral: eu não lembrava mais que existia um solista capaz de prender a atenção do ouvinte por tantos chorus seguidos, numa habilidade aparentemente inesgotável de criar melodias relevantes.
Mas, para além das coisas que minha memória recuperou, esse show me ensinou algo novo. É o seguinte: tenho uma pequena teoria sobre grupos de jazz que estão juntos há muito tempo. Acho que cada grupo acaba encontrando uma “zona de conforto” rítmica, na qual se sente mais à vontade tocando. Normal, como em qualquer relacionamento – um casal acaba se acostumando com determinados restaurantes, bares, práticas sexuais; uma banda se acostuma com determinados grooves.
E, claramente, a “zona rítmica” do Joshua Redman Trio cada vez mais estava se configurando como... Rápida. Bem rápida. Quase como o Ultimato Bourne, que não pára um instante (quase, porque coisa mais rápida que esse filme não há). Então, num determinado ponto do show, cheguei a pensar com meus botões: está tudo muito bom, tudo muito bem... Mas um pouquinho monotemático ritmicamente, tal qual este blog.
Qual não foi minha surpresa quando, sem mais nem menos, Joshua Redman dispara, sozinho, uma longa introdução a Angel Eyes – uma das músicas da minha vida, por supuesto –, sendo ao cabo desta acompanhado por baixo e bateria para criar simplesmente a versão mais bonita desta música que jamais ouvi. Frank Sinatra e Sting, tremei: tem um saxofonista que canta bem mais bonito do que vocês. Meu único lamento é que ela durou um chorus só – por mim, teria se estendido pelo resto da noite.
A surpresa só se expandiu com a subida de Aaron Goldberg ao palco – deu-se aí o início da minha mais recente obsessão musical – para tocar um standard do Berlin e para fechar gloriosamente a noite com outra música absolutamente fora da zona de conforto rítmica da banda – conceito que, a esta altura, eu já me via obrigada a repensar –: um funk delicioso que me deu vontade de sair dançando (é, o som era bom assim) e estudar música de novo.
Percebo agora que o “jazz de verdade” a que inicialmente me referi de fato nada tem a ver com uma suposta Verdade platônica, preocupada com a definição de conceitos ideais como, por exemplo, a saúde do jazz, seu plano de saúde, seu cheiro etc. A verdade que mencionei anteriormente refere-se, isso sim, a uma legítima experiência de verdade que pude vivenciar. Esta experiência é heideggeriana em seu cerne, pois não tem a ver com definições e sim com o desvelamento de algo que estava soterrado pelas experiências falatórias cotidianas; tem a ver com a rememoração daquilo que realmente importa.
Deixo meus pacientes leitores, então, com a única coisa que verdadeiramente importa, de tudo o que escrevi até aqui: o link para o site do Joshua Redman, no qual vocês podem ouvir trechinhos do disco Back East – desde já na minha lista dos melhores de 2007.
Marcadores: recordar
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