O dom de esquecer
ou
Suíte Elaborações - Análise
“Não me venha falar na malícia de toda mulher...”
Esqueci. Ufa! Enquanto escovava os dentes, quando nada evocava qualquer memória – lembrei, que alívio, que esqueci.
De uns dias para cá, dei para sentir falta da minha análise. Na verdade, não da análise propriamente, ou daquilo que as pessoas costumam identificar a um processo de análise. Não sinto falta do meu horário, da minha analista, de deitar no divã, de falar da vida, de ser interpretada. Não – esse script, para mim e por ora, deu.
É de uma determinada sensação que sinto falta. Saudade, até: a sensação de que existe uma pessoa (uma só) no mundo, uma única pessoa que sabe exatamente até onde minha loucura pode chegar. Ela não precisa saber ou entender mais nada – pode até estar meio no escuro com relação aos primeiros sinais de que a loucura está se aproximando; pode também confundir loucura e sanidade... Tudo bem. O importante é que ela acredite na loucura, pelo menos tanto quanto crê em Deus. E quando a loucura vira uma materialidade tão tangível quanto Deus, deixo de ser ótima e de dar conta. Passo a ser vulnerável, e no fundo, potente.
Foi na semana passada que a loucura chegou. Não sei muito bem de que jeito; a loucura é mineira, devora o mingau pelas bordas. E foi assim, como quem não quer nada, que a loucura se apossou de mim, sob a forma de plano infalível (é, aquele mesmo do Cebolinha). Caiu-me como um raio na cabeça, em plena Rebouças, partindo-a em duas. A idéia salvadora. É só botá-la em prática e pronto, a felicidade inundará minha vida novamente.
(
Felizmente, uma das
partes da
minha cabeça ainda pensava, o
que é
melhor do
que nada.)
Bem, essa idéia de que um gesto-mágico-tabajara revolucionará minha vida não é nova – a publicidade, aliás, vive desta mesma idéia. É essa a minha loucura básica de cada dia – ou melhor, de cada duas semanas. É batata: algumas mulheres têm TPM, eu tenho esse troço aí. Elas pelo menos sofrem uma vez só no mês. Mas cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, e gosto não se discute e sofrimento não se compara.
Então, não foi isso o que me assustou. Com a idéia-1406, já estou acostumada. Não há remédio para a crença de que existe remédio.
O susto veio mesmo com o plano infalível. De repente, senti-me em plena posse do coelhinho Sansão. Era tudo tão simples – os gestos, as ações e insinuações, as palavras – tudo surgiu com a clareza impressionante das aparições religiosas, antes mesmo que eu ultrapassasse o farol da Oscar Freire (eu vinha do Pacaembu).
Acho que meu susto me salvou.
O tempo parada no trânsito e a parte da cabeça que ainda me restava foram suficientes para eu me lembrar de que, ao fim e ao cabo, a Mônica sempre dá uma surra no Cebolinha. Invariavelmente. Ele sempre sai da historinha ferido, machucado. E assim teria sido comigo. Mais uma vez.
Semana passada no trânsito, semana presente no banheiro. Escovando os dentes com prazer, dou-me conta de que... Esqueci.
Não me lembro mais do plano infalível que concebi.
A lembrança, a memória costumam ser sobrevalorizadas – Funes que o diga. Mesmo na psicanálise, circula a idéia mais ou menos bem estabelecida de que fazemos análise para recuperar os traumas inconscientes do passado. Lembrar, lembrar, recordar! Até o título deste blog trata disso.
Algumas pessoas bem podem precisar de uma análise que lhes ajude a lembrar.
O maior ganho que obtive com a minha, percebo agora, foi ter-me tornado capaz de esquecer.
Marcadores: recordar repetir elaborar
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