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quarta-feira, 18 de junho de 2008

Um dilema ético

Uma de minhas rotinas favoritas é ler meus sites e blogs de estimação enquanto tomo café da manhã. Preciso ficar mais esperta: esta semana, houve ocasião em que quase espirrei leite sobre o teclado. Eis os parágrafos responsáveis por isso, que introduzem o release do disco de estréia da contrabaixista e cantora Esperanza Spalding:

"Every few years, a new artist comes along with talent and potential so great that it challenges and redefines the common perceptions of what jazz is and where it's heading. The new light on the horizon may be a compelling vocalist one year, or perhaps an unmatched instrumental virtuoso a few years later, or maybe a brilliant composer a few more years down the road.

Bassist/vocalist/composer Esperanza Spalding is all of these things and more. And she will, in fact, challenge and expand your perceptions of jazz."

Como explicar aos meus seis leitores o quase-derramamento de leite? Tão assombroso é o absurdo, que não sei se começo pelo meio ou pelo fim; e quando me bate esse tipo de dúvida, sei que devo começar por um lugar tão inusitado quanto o assunto que irei comentar. Comecemos, então, pelo Bush.

Se vocês bem se lembram, qual foi o argumento principal utilizado para justificar a invasão do Iraque? Que lá havia as famigeradas armas de destruição em massa - coisa que logo foi desmentida e a maioria dos estado-unidenses nem ligou, como mostra o resultado das eleições presidenciais de 2004. Mas, além desse, havia outro argumento, tão mais sutil quanto poderoso: a insistente e falaciosa repetição de que existia um vínculo entre Saddam e a Al-Qaeda. Reparem que em nenhum momento se disse explicitamente que Saddam fora o responsável pelo 9/11 - mas foi precisamente isto que foi sendo progressivamente inculcado nas cabecinhas distraídas dos estado-unidenses*. Afinal, todos somos ovelhinhas quando não estamos prestando atenção.

O problema é que, ao ler o release da moça, eu estava. E que faz o texto? Não é que ele sujira que Esperanza seja a mais nova revelação do jazz - o que, por si só, já seria uma declaração suficientemente pretensiosa e bombástica. Não: sugere-se, simplesmente, que Esperanza seja pelo menos três vezes melhor do que todas as revelações do jazz, afinal ela faz três vezes mais coisas do que a típica revelação costuma fazer. Brad Mehldau toca, Luciana Souza canta, Brian Blade compõe? Esqueçam todos eles: Esperanza Spalding faz tudo isso, "and more"!

Existe uma ótima citação sobre o ato de escrever a partir da qual é possível traçar um paralelo com a música (não o ato de produzi-la, mas a própria música):

"Planejar escrever não é escrever. Traçar o projeto de um livro não é escrever. Pesquisar não é escrever. Falar com as pessoas sobre o que você está fazendo, nada disso é escrever. Escrever é escrever." (E. L. Doctorow)

A habilidade de tocar um, dois ou dez instrumentos não é música. Escrever notas numa partitura não é música. Ler a letra de uma música não é música. Música é música.

Quando se trata de música, já está claro, sou maquiavélica: pouco me importam os meios, interessa-me o resultado final. Tocar, cantar e compor, em si, não são valores absolutos. A conjunção destas habilidades só adquire algum valor se delas resultar boa música. Isto posto, que tenho a dizer sobre a música de Esperanza Spalding?

Digo que é SENSACIONAL. Ela é talentosa até não poder mais. Os timbres dela - tanto de sua voz como de seu baixo - me agradam muitíssimo. Os arranjos que ela escreve também - a rearmonização de Ponta de Areia, por exemplo, ficou massa, com uma linha de baixo irresistível. Ela improvisa solos memoráveis (confiram "If That's True") e isso, convenhamos, é coisa raríssima de se encontrar num contrabaixista. Ela compõe direitinho - duas músicas, em especial, são uma graça: uma que poderia estar no próximo disco do Djavan ("I Know You Know"), e outra no próximo da Alicia Keys ("Precious"). Minhas críticas e outros elogios ao disco encontram-se bem resumidos aqui, num dos raros casos em que ouvi o disco, li a resenha e fui fazendo ãrrã para tudo.

Por tudo isso, espero que Esperanza seja a primeira a sair da minha listinha de desconhecidos e se transforme na próxima Norah Jones. Ela tem tudo para chegar lá: é jovem, linda e conta com uma campanha de marketing poderosíssima.

Agora voltemos ao release. Tem também a parte que diz que ela vai desafiar e expandir as minhas - as suas, as nossas - percepções do jazz. Mas essa é uma conversa tão claramente para ninar o boi, que me aterei ao óbvio: nem se eu partisse do Bush conseguiria dimensionar a imensa distância que vigora entre um Miles Davis e uma jovem musicista que lança um disco de estréia promissor.

Chegamos, enfim, ao dilema ético que é a razão de ser deste post. Quando eu era criança, me ensinaram que mentir era feio, e acreditei nisso. Ao longo da vida, porém, descobri que verdade e mentira são valores relativos, como recentemente demonstraram a ministra e a feminista. Se, por um lado, mentir para o Senado e para a população norte-americana em função dos interesses comerciais de alguns me parece a mentira mais condenável e escabrosa que há, mentir para o torturador é um ato de coragem.

Fica então a pergunta: numa escala que vai da mentira ao povo (trazendo dinheiro para poucos e morte para muitos) até a mentira ao torturador (que, pelo contrário, impede assassinatos), onde situar uma mentira inofensiva como a que se vê no release de Esperanza? Pois os benefícios dela advindos são muitos - maiores chances de divulgação de um trabalho excelente -, e o malefício é nenhum.

Se penso no problema de um ponto de vista exclusivamente intelectual, acho que tem mais é que mandar ver nos caôs mesmo. Só que até meu relativismo maquiavélico tem limites. Eu jamais teria coragem, por exemplo, de escrever coisa semelhante sobre o Gabriel, ou mesmo sobre o André Mehmari. Acende uma luzinha vermelha no superego que não me deixa ir adiante.

Naturalmente, uma série de fatores converge para o sucesso de Esperanza, dentre os quais se destaca a exploração de sua imagem. Mas o tom que norteia a campanha claramente é este: "temos aqui a melhor e mais revolucionária musicista de jazz dos últimos tempos". Está funcionando, que bom que está. E, todavia, meu superego teima em piscar. Não consigo silenciar a menininha que ouvia da mamãe: mentir é feio, muito feio.


*Uma pesquisa rápida no Washington Post há de suprir a falta de links desta parte do texto.

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