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sexta-feira, 6 de junho de 2008

Textos e interpretações

Um querido camarada me propôs um desafio:

"Você postaria intencionalmente uma foto em que você aparece descabelada e horrível?"

Vamos ao contexto. Na melhor tradição Edson / Pelé, conversávamos sobre as diferenças entre a Camila do blog e a Camila em pessoa. Diz o camarada que a primeira é um personagem e a segunda... Bom, ele não disse o que é a segunda e não sei se faço justiça a seu pensamento ao propor uma oposição binária entre ficção e realidade. Mas uma coisa ele disse: que a primeira é muito mais controlada que a segunda. Se ao vivo num bar posso usar maquilagem, no blog tenho o backspace, mais efetivo que qualquer pancake. Essa evidente diferença no nível de controle de que dispomos em uma situação e na outra faria da Camila do blog a pessoa que quero ser, enquanto pessoalmente eu seria aquilo que sou.

Mas oxe.

O camarada se esquece.

Que sou psicanalista, né.

Acredito em inconsciente.

Acredito que o inconsciente está pouco se lixando para nossas tentativas de controle consciente sobre as coisas - incluindo aí a imagem que fazemos e passamos de nós mesmos. O inconsciente está no bar, está no blog. Backspace algum apaga suas marcas.

Mas é claro que a discussão ficou mais metida a séria do que isso. E chegou ao inevitável o que é blog / o que é literatura. Mais: o que é interpretar um texto. Bora então resolver o problema da hermenêutica em um post, que ambição pouca é bobagem.

Diz meu camarada que, independentemente da concepção que se tenha de interpretação, um texto é sempre um texto - seja um blog, seja uma obra literária. Pressupõe ele, portanto, que partimos sempre da mesma estratégia de leitura, para qualquer texto que se apresente.

Tendo a pensar diferente. De certa forma, é claro que infelizmente só posso partir de mim mesma para interpretar um texto (quisera ser John Malkovich por um dia). Mas graças a Deus, I am many, e cada dia um pouquinho mais, graças a tudo o que leio. Porque o texto cria o leitor. Amós Oz criou uma leitora que eu nem suspeitava que pudesse existir. O blog LLL também. E Freud, e Leaves of Grass. Nem a pau que abordo tudo da mesma forma. Ou, pelo menos, meu esforço é justamente para que nem a pau. Porque se um texto não me transforma, então pra quê.

Por isso não consigo, de jeito nenhum, pensar que este blog é recheado de personagens literários, e nisso concordo com o Alex. Mas sei que esse "por isso" do começo da frase não explica nada: por-isso-o-quê? E dá-lhe o método covarde: não é por causa da intenção do autor. A intenção do autor - e o método de construção do texto - nada tem a ver com a materialidade do texto. Nisso, portanto, discordo do Alex, que diz que a arte é uma construção consciente (em oposição a "coisas que fluem" do corpo e do espírito). Porque a vida, apesar de curta, é misteriosa demais para se restringir as origens e os limites da arte a um método ou outro. Não duvido de que existam artes construídas consciente, pré-consciente e inconscientemente. O método não importa. Não quero saber se Dorival demorou nove anos para compor João Valentão ou se Dolores Duran escreveu a letra de Por Causa de Você em poucos minutos (no guardanapo, com o lápis de sobrancelha). Ou melhor, até quero, pois o assunto me fascina. Mas, no fim, o que fica é a arte: é a música, são as canções. Dizem que Tom compôs Águas de Março num momento relax depois de dias burilando Matita Perê. Só me resta perguntar se, antes de dispor dessa informação, alguém arriscaria dizer que a segunda é literatura e a primeira é blog.*

Meu blog é lápis de sobrancelha no guardanapo, sem dúvida alguma. Escrevo isso aqui com muito carinho, até porque só sei escrever - e fazer todas as coisas que importam, aliás - desta forma. Mas o cuidado, o carinho, o gosto, a preocupação com a escrita - nada disso faz deste blog mais do que uma coleção enorme de falatórios (Heidegger que me perdoe a utilização do termo no plural) - pontilhada aqui e ali, é claro, por duas ou três linhas de epifania, revelação, desvelamento e fala autêntica. Se não me engano, é este o próprio movimento da vida.

Para um texto sem conclusão, nada melhor do que pelo menos uma resposta clara e definitiva. No caso, à provocação do querido camarada:



* O exemplo do Tom é melhor que o primeiro, pois poderíamos cair na armadilha das equivalências simples: construção lenta = consciente; rápida = inconsciente. Começa que tudo é consciente, e o inconsciente permeia tudo. O exemplo do Tom é melhor porque ele mesmo diz que, num caso, o trabalho de burilamento a posteriori da obra foi muito maior do que no outro, que exigiu dele menos burilações (menos intervenções conscientes, portanto).

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