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quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

O primeiro dia

O primeiro dia deste ano tinha tudo para ser melhor do que o primeiro dia do ano passado, e por pouco não foi. Melhor. Lembro-me de bons primeiros dias de anos passados: aquele que passei com meu irmão virtual - hoje mais para primo de terceiro grau - em Santos; aquele em que minha-melhor-amiga-além-da-Bel - hoje mais para prima de quarto grau - me ligou preocupada com minha saúde psíquica, então estável devido ao recebimento de um e-mail tão reconfortante quanto despudoradamente falso; aquele que passei rodando a cidade inteira com o Lima - hoje, pelo menos ele, ainda Lima - atrás de um restaurante para almoçarmos, às cinco da tarde, parando enfim naquela churrascaria honesta da Rebouças.

Mas o primeiro dia do ano passado, embora - como tudo na vida - sempre podendo ter sido pior, ainda não encontrou concorrente como o primeiro dia mais deprê da história. E olha que todo primeiro dia do ano, por definição, é deprê - mesmo os bons são inevitavelmente carregados daquele sentimento de que o ano novo mal começou e você já está atrasado; o ano novo começou e você ainda não se matriculou na academia, não se inscreveu como voluntário no orfanato do seu bairro e não encontrou o amor da sua vida. No ano passado, essas três certezas fizeram-se especialmente evidentes; o tempo, então, era o meu bem mais precioso, e não só não me matriculei em academia ou orfanato nenhum como marquei um atendimento para o fim daquela tarde - não porque o paciente estivesse desesperadamente precisando, mas porque eu não teria condições de remarcá-lo para outro dia, preferindo assim atender logo no primeiro dia e "me livrar duma vez". Mas me livrar do quê?

Da minha vida, por supuesto. Tudo estava no lugar errado: eu odiava meu trabalho, o namoro havia se convertido numa instituição pro-forma (a terceira certeza que se adensava), eu estava distante das pessoas que mais amava - e, como que para não deixar dúvida de que as coisas simplesmente não se encaixavam, eu estava magra pelos motivos errados. Eu estava cansada, feia e profundamente infeliz. Talvez o mais sombrio nisso tudo seja a lembrança de que não é que não havia nenhuma perspectiva de melhora ou felicidade para mim - havia, claramente, eu só não conseguia vê-la. E talvez seja nisto que consista a verdadeira falta de perspectiva.

Era esse o pano de fundo sobre o qual destacaram-se os seguintes - poucos - eventos: oito horas no carro para voltar para São Paulo; um atendimento de cujos detalhes não me lembro, mas que com certeza não foi fácil, pois até hoje não me lembro de nenhum atendimento desse tipo como tendo sido algo menos que muito difícil; uma noite que passei sozinha, embora fisicamente acompanhada, quando tudo o que eu mais queria e precisava era de um colo, eu que adoro colos. Mas ninguém estava aqui.

Ninguém estava ali, porque eu não estava tão ruim assim. Acho que era o Hume - ou algum outro empirista inglês, as aulas de filosofia agora me faltam - quem dizia que a percepção sensorial presentificada comporta traços muito mais vívidos e fortes do que jamais poderão ser os traços mnêmicos, para sempre destinados a constituir na mente uma cópia imperfeita da percepção sensorial.

É mentira. Isso só se aplica àquilo que não importa - por exemplo, minha lembrança já esvaída do nome do filósofo - o resto, a memória realça ou apaga, torce e retorce como lhe convém, sem o menor respeito pelas leis de uma filosofia da consciência. Foi apenas com a ajuda da memória que, recentemente - ontem mesmo - , pude me dar conta da dimensão do meu sofrimento no começo daquele ano, que agora já parece ter acontecido quinze anos atrás.

Oito horas de trânsito. Eu estava no carro com três pessoas ótimas - uma das quais espero, inclusive, que permaneça em minha vida por muito tempo -: o problema é que ainda está para nascer um ser humano cuja companhia me seja prazerosa ao longo de oito horas dentro de um carro, no trânsito. Eu digo que está para nascer, porque mesmo se minha mãe ressuscitasse ou se o homem da minha vida aparecesse montado num cavalo branco - ou, o que parece muito mais razoável, numa escova de dentes velha, para não falar em outro apetrecho ainda mais significativo - eu dispensaria de bom grado a companhia. Ninguém, e muito menos eu mesma, é companhia agradável para mim ao longo de oito horas consecutivas de trânsito.

Em oito horas consecutivas de trânsito, um fenômeno curioso começa a tomar forma: acredito piamente na existência do tal túnel do final da vida, porque sei que existe o túnel do meio do trânsito. Quando em meio ao mais tenebroso trânsito, toda a sua vida passa a ser ressignificada em função daqueles momentos - sim, não são horas, pois no trânsito o tempo é composto por uma sucessão absolutamente sem sentido de momentos - da mais inescapável imobilidade. Mas não a sua vida passada, como sói acontecer à hora da morte, e sim a vida futura: imagino-me casando, tendo filhos, criando-os, mandando-os para a faculdade - tudo sem sair de dentro do carro.

Este ano? Passei meras duas horas dentro de um carro, sem trânsito nenhum, podendo apreciar inteiramente a companhia de três das cinco (se eu fosse honesta, precisaria dizer seis) pessoas que amo com todas as forças. Cheguei em casa e fiz coisas fantásticas que relatarei em posts subseqüentes.

Mas aí, a crise - e que crise é esta, só a Bel e a minha ex-analista sabem - ela, que me acomete de quando em quando, me tomou. Com uma força que destruiu o pouco que sobrou de minhas unhas depois das leituras angustiantes do final do ano. Que devorou horas e horas do precioso tempo de que disponho neste planeta - horas passadas na mais completa solidão, considerando que o onipresente Sr. Google não conta como companhia. Que quase destruiu por completo o primeiro dia do ano.

Depois de algumas horas, não é que a crise passou, propriamente - eu é que passei dela, e fui fazer outra coisa. Ela ainda está aqui, perto, bem perto da superfície, se cutucar de levinho ela aflora novamente. Mas o bom é que só depende de mim cutucá-la, e agora já não quero mais - o fim de ano já passou, hoje já é dia útil e não tem mais por que me deixar levar por sentimentalismos tão verdadeiros quanto inúteis.

Ontem suspirei resignada ao perceber, mais uma vez, o quanto estou longe, ainda muito longe de conseguir colocar um fim a essas crises.

Mas pela primeira vez percebi que essa distância, grande como ela é, não é maior do que a distância existente entre o ponto atual e o ponto de partida, quando a crise nem era vista como tal mas constituía a própria essência de minha mesquinha existência, ocupando boa parte do espaço psíquico e sugando quantias razoáveis da energia mental - conceitos abstratos apenas até serem preenchidos por aquela substância viscosa e densa de que Jacob deve ser feito - de que eu dispunha para sobreviver as vinte e quatro horas do meu dia. Se essa trajetória fosse linear, eu já teria passado da metade do caminho. O iceberg já derreteu.

Como não é, preciso continuar me cuidando. O familiar de um paciente, dependente químico abstinente há muitos anos (o familiar, não o paciente), disse certa vez uma coisa que ficou perdida em meio a tantos outros assuntos que precisávamos pôr em pauta na reunião, mas que não se perdeu em minha memória.

A coisa:

"Eu posso fazer uma série de coisas. Eu posso até me separar - eu só não posso usar droga."

Aproveitando para oferecer o meu voto à enquete que se encerrou há pouco, foi esta certamente a minha maior não-realização de 2007: eu não usei drogas. Ou melhor: eu não usei a minha droga, a mim muito mais nociva que qualquer composto químico que traficantes possam vir a inventar.

E foi a partir desta não-realização que tantas - vá lá, não foram tantas assim, mas foram algumas, sem dúvida - realizações foram possíveis. Entre elas, este blog.

Em 2008, desejo para mim mesma, para os que tiveram paciência de ler até aqui e também para aqueles que abondanaram a leitura no primeiro parágrafo, que possamos acima de tudo realizar a façanha de uma não-realização como esta: uma não-realização que abra espaço na mente e no corpo como facões pela mata - facões que abram passagem para algo um pouco mais humano.

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