Dialética sem síntese
Dando prosseguimento ao texto aí de baixo, agora com um pouco mais de serenidade.
O que mais me surpreendeu na experiência de ser seqüestrada e assaltada não foi o medo, o alheamento, a dessensibilização; isso tudo eu podia supor que alguém nestas condições iria sentir. O que eu não supunha de forma alguma era o estica-e-puxa – principalmente estica – egóico. Quando se é confrontado com a mais crua realidade do que a sua vida é – isto é, um nada que em nada altera os rumos da nação e do universo – é que vem com toda a força uma tentativa de fazer a nação e o próprio universo dependentes da sua vida. “Legado para a humanidade”, vejam vocês. Posso dizer com honestidade que nunca até aquele momento eu havia pensado em mim mesma em termos tão pretensiosos como estes, “o legado que deixarei para a humanidade”. Mas na sexta-feira eu pensei. E mais: pela primeira vez na vida pensei com a mais absoluta seriedade na possibilidade de ter filhos. Depois, é claro, eu entrava um pouco mais em contato com a realidade da vida (ao estica seguia-se o puxa): aula de inglês no dia seguinte e, com exceção da arma que esses caras portam, nada neles indica que possuem qualquer intenção de me matar. E eles preocupados com o carro de polícia que passava, com gente que podia estar olhando, e eu pensando – que viagem, ninguém tá vendo porra nenhuma, como esses caras são perseguidos. Por um instante me ocorreu que, caso eles tivessem tido acesso aos meus pensamentos de “legado para a humanidade”, teriam concluído algo bem semelhante: que viagem, que mocinha mais ingênua e desesperada, pois ela não está vendo que a gente só quer uns 500 real pra passar o fim de semana.
Na sexta-feira eu virei o centro do universo, e odiei esta sensação. Não é esta a minha vida; não é disso que gosto, não é assim que eu quero ser. Eu gosto é de fazer parte de um universo no qual sou, sim, importante – junto das pessoas de que gosto, e das que não gosto também. Mas esta importância não faz de mim essencial nem especial. O mundo prossegue sem a minha presença, e é bom que prossiga.
Mas agora carregarei para sempre a sensação estranha (e um pouco embaraçosa) de ter sentido a minha vida como algo muito maior do que realmente é. Pior: nunca poderei apagar a vergonha de saber que, a primeira vez que considerei com seriedade a possibilidade de ter filhos, não foi com o intuito de me disponibilizar para o nascimento e o crescimento de outras pessoas que levarão suas vidas próprias – mas com o intuito de que tais pessoas fossem uma mera extensão de mim, fabuloso e relevante ser; uma mera extensão de mim, centro do universo.
Por isso fiquei com tanta pena do Luciano Huck.
As pessoas o criticaram por coisas que acho absurdas. É a lógica do nivelamento por baixo: se eu sou assaltado, você merece ser assaltado também, seu rico-filho-da-puta. Se os pobres sofrem, isso deve ser descontado nos ricos. Se eu pago meus impostos e não tenho segurança, o Luciano Huck também não tem que ter.
Não. Nada disso para mim faz sentido. O Luciano Huck, por mais que eu o deteste, merece sim ter segurança pública de qualidade. Ele e todos os brasileiros. Segurança e, principalmente, saúde e educação.
Fiquei com pena porque, em seu texto, ele deixa claro que esta sensação com a qual convivi por uma hora, durante o assalto, é a sensação-basal da vida dele. Ele não tem a menor dúvida de que ele é, de fato, o centro do universo. Sempre. Com ou sem assalto. (Fica até chato criticar a presunção das primeiras frases do seu artigo, ou a sua declaração de como ele contribui para fazer deste país um lugar “bacana”. Seria como criticar o Big Brother, a Xuxa ou qualquer coisa que venha da Globo – é o próprio chute no cachorro morto. Deixemos, pois, o cachorro em paz.) Imaginem a pessoa insuportável que eu seria se, até agora, horas após o combo seqüestro & assalto, eu ainda estivesse preocupada com meu legado para a humanidade... Pois esta pessoa é Luciano Huck – cujo “legado”, aliás, nem está em questão: “um país mais bacana”. Para não falar na “multidão” que choraria a sua perda.
E é isso o que torna as suas reivindicações tão hipócritas. Afinal, é só agora, depois que ele e uma ou duas pessoas de seu conhecimento foram assaltadas, que é chegada a hora de “discutirmos segurança pública de verdade”. É como se, até então, estivesse tudo certo: como se as milhares de pessoas assaltadas e os milhares de assaltantes “sem infância ou educação” que o tivessem precedido pouco ou nada importassem. Mas agora que seu umbigo é posto em xeque, ah, agora sim é chegada a hora de cansar, de peidar, de fazer alguma coisa. O seu umbigo é a gota d’água.
Individualismo gera violência, que gera mais individualismo.
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